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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

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A pandemia como fenômeno social

Atualizado: 12 de jan. de 2023

Prof. Dr. Daniel Granada
Universidade Federal de Santa Catarina
Departamento de Ciências Naturais e Sociais 

A forma como ocorreu a disseminação do vírus da Covid 19 pelo mundo, forçando países a tomarem medidas fortemente restritivas, provocou por outro lado uma mobilização necessária no campo das ciências humanas e sociais na busca de uma melhor compreensão do fenômeno. Atualmente a única certeza que temos é que qualquer afirmação categórica sobre o momento atual e seus desdobramentos futuros pode representar, no mínimo, uma atitude leviana, senão irresponsável.

Sopa de Wuhan [2020] Autores diversos [Direitos dos autores]

Diferente da história que trabalha sobre o passado, a tarefa sociológica é olhar para o presente, buscando encontrar as respostas para se compreender as dinâmicas que ocorrem na sociedade, olhar para o presente pode se mostrar uma tarefa ingrata. Há poucos dias tivemos um exemplo interessante no qual um grupo de filósofos e cientistas sociais internacionalmente reconhecidos, aproveitando a comoção causada pelo vírus, foram reunidos através da publicação em um livro algumas de suas reflexões sobre a atual crise. O livro intitulado “Sopa de Wuhan” trazia na capa referências a morcegos e à China, o que provocou um grande alvoroço mobilização nas redes sociais. As críticas denunciavam o caráter xenófobo da publicação que indiretamente colocava em evidência a doença associada a um determinado país. Além disso, seu conteúdo foi entendido como o exercício de um pensamento eurocêntrico e preconceituoso com relação à China. (Jabbour, 2020).

Ai Weiwei, With Wind [2014] [Direitos do autor]

O debate atual sobre o impacto da pandemia é polifônico e complexo. Existem os que afirmam que o vírus é uma força anárquica invisível provocando transformações profundas por onde passa (Coccia, 2020), há os que pensam que o vírus pode ser visto como um golpe mortal ao capitalismo que daria lugar a um comunismo obscuro, que chegaria a colocar em risco o regime Chinês (Zizek, 2020). Outros argumentam que, pelo contrário, o estado policial Chinês sairia fortalecido de seu embate contra o vírus, uma vez que demonstraria sua superioridade no controle da epidemia (Han, 2020).

Também existem os que entendem a pandemia como uma oportunidade de implementação de um Estado de exceção como paradigma normal de governo, no qual as liberdades fundamentais mais elementares são suprimidas (Agamben, 2020). Através desta abordagem a pandemia é vista como uma momento chave para se implementar meios de controle muito mais sofisticados sobre a população, como por exemplo a restrição da circulação com a extrema limitação do direito de ir e vir, controle da mobilidade através de políticas de fechamento de fronteiras, monitoramento e controle da população através do uso de rastreadores de telefones celulares pelas operadoras que fornecem dados ao Estado para que este controle seja exercido e se identifique aglomerações. A crise poderia justificar políticas mais restritivas, perdas de direitos trabalhistas e sociais em nome da luta contra a doença e a proteção da saúde coletiva. Alguns autores argumentam ainda que a crise serve para recolocar a necessidade de um estado de bem-estar social na agenda, demonstrando a importância dos sistemas públicos de saúde[i].

Dentro das “dinâmicas pandêmicas” existem efeitos macrossociais como os citados acima, mas também existem dinâmicas microssociais que provocam mudanças nos modos de vida e na forma como nos relacionamos. Se é possível afirmar algo com relativo grau de certeza neste momento é que, mesmo se alguns afirmam que o vírus é “democrático” e ataca todos sem distinção, na verdade, um olhar atento consegue identificar que as desigualdades presentes na sociedade se refletem nas formas de acesso aos cuidados em saúde, deste modo o vírus não afeta da mesma maneira toda a população.

Um caso interessante que exemplifica estas ideias foi a ocorrência do primeiro caso registrado de morte pelo novo coronavírus na cidade do Rio de Janeiro[ii]. Uma das primeiras pessoas que morreu foi uma senhora de em torno de sessenta anos, que trabalhava como empregada doméstica em um dos bairros nobres do Rio de Janeiro. Ela contraiu o vírus de sua patroa que havia recentemente retornado de uma viagem pela Itália. Entretanto as informações de que dispomos não informam se a patroa morreu, provavelmente tenha tido acesso aos cuidados em saúde em clínicas particulares da cidade do Rio de Janeiro. Já a empregada morreu em um hospital de Miguel Pereira, no interior do estado do Rio de Janeiro, porque em virtude da doença a patroa a tinha enviado de volta para casa. Assim, neste exemplo, podemos entender que mesmo que o vírus contamine indiscriminadamente, as condições sociais nas quais transcorre a vida das pessoas é um fator importante para compreendermos que o impacto da doença não é uniforme.

Alguns estudos têm argumentado sobre a necessidade do desenvolvimento de pesquisas levando em conta questões relacionadas à etnicidade para compreender o impacto diferenciado nas taxas de mortalidade pela infecção pelo novo Coronavírus (Pareek et al. 2020). Argumenta-se que no Reino Unido (as BME Communities), as populações afrodescendentes e minorias étnico raciais são as mais afetadas em função de hábitos e estilos de vida, mas também condições socioeconômicas que levariam a uma maior exposição ao contágio[iii]. Uma vez que estas populações realizam trabalhos considerados como essenciais como por exemplo coleta de lixo, serviços de entrega, trabalhos no comércio como caixas e atendentes, sem dispositivos adequados de proteção.

Na América Latina em geral e no caso do Brasil em particular os especialistas preveem um cenário trágico de propagação da pandemia com muitas mortes (Burki, 2020). Em nosso continente, às desigualdades sociais enormes, somam-se dificuldades históricas relacionadas à precarização e subfinanciamento dos serviços de saúde pública. Os efeitos da disseminação da pandemia nas favelas e bairros onde as condições de vida são precárias, associado às imagens recentes que chegam do Equador com corpos deixados nas ruas, ou os enterros coletivos em covas comuns em Manaus, capital do Amazonas, causam grande tensão e expectativa sobre o que pode estar por vir[iv].

Cacildo Meireles, A guerra dos mundos. [Direitos do autor]

Alguns poderiam argumentar que há mais de 500 anos os povos autóctones das américas morrem de gripe e outras doenças trazidas de fora do continente. De fato, essa é uma interpretação possível, entretanto as desigualdades sociais contemporâneas na América Latina, que fazem do continente uma das regiões mais desiguais do mundo, provavelmente vão se refletir no número de casos e mortes pela Covid 19.

Mesmo se o que vem pela frente ainda não esteja definido, o que podemos afirmar é que as desigualdades sociais potencializam as desigualdades em saúde. Nos próximos anos certamente teremos que discutir novamente o papel de um sistema público de saúde, bem como criar respostas coordenadas entre nações, estados e municípios que possam dar conta de situações de crise. O que é certo é que o mundo de hoje já é muito diferente daquele em que vivíamos há poucos dias atrás.

***Este texto foi preparado para o debate A Pandemia como fenômeno social, organizado pela Universidade Pedagógica Nacional da Colômbia realizado em 24 de abril de 2020. Gostaria de agradecer a leitura atenta do colega membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia que contribuiu com esta versão.

Bibliografia

Agamben Giorgio La invención de una epidemia. (26 de febrero)

BURKI, Talha COVID-19 in Latin America. Several problems undermine the preparedness of countries in Latin America to face the spread of COVID-19. Published Online

April 17, 2020 https://doi.org/10.1016/ S1473-3099(20)30303-0

COCCIA, Emanuelle. O vírus é uma força anárquica de metamorfose. N-1 Edições. 2020. on-line. Disponível em: https://n-1edicoes.org/021?fbclid=IwAR1qkHWK8W25tIR-SdmPFsGcrDF2M9NQQ4I5WvOF7CVTq3-XDYqcqTtqC8A

Han Byung-Chul La emergencia viral y el mundo de mañana (22 de marzo). In: AGAMBEN, et al. Sopa de Wuhan. ASPO, 2020. Disponível em: https://dialektika.org/wp-content/plugins/algori-pdf-viewer/dist/web/viewer.html?file=https%3A%2F%2Fdialektika.org%2Fwp-content%2Fuploads%2F2020%2F04%2FSopa-de-Wuhan-ASPO.pdf

JABBOUR, Elias. Muito além da sopa de Wuhan. Le Monde Diplomatique, 17 de abril de 2020. Disponível em https://diplomatique.org.br/a-china-muito-alem-da-sopa-de-wuhan/

*Manish Pareek, Mansoor N Bangash, Nilesh Pareek, Daniel Pan, Shirley Sze, Jatinder S Minhas, Wasim Hanif, Kamlesh Khunti. Ethnicity and COVID-19: an urgent public health research priority Published Online April 21, 2020 https://doi.org/10.1016/ S0140-6736(20)30922-3

ŽIŽEK, Slavoj. El coronavirus es un golpe al capitalismo a lo Kill Bill…(27 de febrero) In: AGAMBEN, et al. Sopa de Wuhan. ASPO, 2020. Disponível em: https://dialektika.org/wp-content/plugins/algori-pdf-viewer/dist/web/viewer.html?file=https%3A%2F%2Fdialektika.org%2Fwp-content%2Fuploads%2F2020%2F04%2FSopa-de-Wuhan-ASPO.pdf

Governo do Rio de Janeiro confirma primeira morte por Coronavírus. O Globo. Disponível em:

“Coronavírus mostra a importância do Estado de bem-estar social” Disponível em:


“Coronavírus mostra a importância do Estado de bem-estar social”

“Sem espaço para enterrar as vítimas da Covid-19, Manaus empilha caixões” Disponível em:

 

[i] Ver por exemplo a reportagem “Coronavírus e a importância do estado de bem-estar social” listada nas referências abaixo.

[ii] Ver a matéria publicada no jornal O Globo “Governo do Rio de Janeiro confirma primeira morte por Coronavírus.” listada abaixo nas referências.

[iii] BME Communities designa em inglês Black and minority ethnic Communities, traduzido pelo autor para o português como populações afrodescendentes e minorias étnicas.

[iv] Ver a matéria publicada no jornal Folha de São Paulo “Sem espaço para enterrar as vítimas da Covid 19, Manaus empilha caixões”, listada abaixo nas referências.

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