
Qual a relação entre acesso à justiça e inteligência artificial? Como situações que podem parecer tão díspares possuem conexão e podem ser tratadas em um mesmo texto? Para iniciar a reflexão, é importante estabelecer duas principais premissas quando se conceitua o acesso à justiça: a) a sociedade possui conflitos. Estes conflitos, quando não resolvidos de forma autônoma (pelas próprias pessoas), necessitam de uma solução heterônoma (solução advinda do Estado-Juiz/Poder Judiciário); b) Todos temos direito de acesso à resolução de conflitos de forma a aplicar o melhor direito e a melhor justiça, em cada caso conflituoso.
Importante também elucidar o conceito de inteligência artificial, aqui dimensionado, para a compreensão do texto. Faz-se necessário distinguir a inteligência artificial em dois aspectos: a) forte e; b) fraca. A forte, refere-se à efetiva tomada de decisões e resolução dos conflitos pelo Poder Judiciário. A fraca, refere-se à realização de tarefas que envolvem a inteligência artificial (salvar arquivos, enviar e-mail, realizar ligação) que também fazem parte do cotidiano judiciário. O foco do texto está na “inteligência artificial forte”, pois o intuito é refletir sobre a realização de tomada de decisões e/ou resolução de conflitos, como se fossem tarefas automatizadas (inteligência artificial fraca), de forma com que o procedimento para chegar na solução da lide torne-se, célere, prático e justo, aplicando-se a justiça nos casos levados à solução pelo Poder Judiciário.
Estabelecidas estas premissas, é importante destacar que a utilização da tecnologia no Poder Judiciário, em geral, não é nova. A resolução de conflitos, a qual ocorre através da resolução dos processos judiciais, em alguns estados, já é realizada no formato eletrônico. Note-se aqui a informação do Conselho Nacional de Justiça sobre o processo eletrônico no ano de 2022:
De forma inédita, o relatório Justiça em Números apresenta em 2022 detalhes sobre a informatização dos tribunais. Em 2021, os processos eletrônicos representaram 80,8% das ações em tramitação e 89,1% dos casos baixados. Dos 90 órgãos do Judiciário, 44 aderiram integralmente ao Juízo 100% Digital, o que abrange 67,7% das serventias judiciais. Nessas unidades, todos os atos processuais podem ser praticados por meio eletrônico e remoto, inclusive audiências e sessões de julgamento. Segundo o anuário, os processos eletrônicos proporcionam uma redução média de três anos e quatro meses no tempo de tramitação, o que pode representar quase um terço dos prazos registrados nos processos físicos, que giram em torno de nove anos e nove meses (CNJa, 2022).
Grande parte dessa estrutura eletrônica estatal foi agilizada durante a pandemia. O Poder Judiciário publicou diversos atos normativos para adaptar a prestação dos serviços jurisdicionais, sem colocar a segurança da sociedade e de profissionais em risco. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça “foram publicados 22 atos normativos do CNJ sobre como proceder durante o período pandêmico, incluindo medidas emergenciais de suspensão das atividades e a ampliação do uso de audiências virtuais, por exemplo” (CNJb, 2022). Ainda possuem vigência as Resoluções CNJ n. 322/2020 e n. 397/2021, que buscam prevenir o contágio e orientar os cidadãos em face do Coronavírus.
Assim, pergunta-se: como o Poder Judiciário utiliza a inteligência artificial para solucionar conflitos que dependem de um olhar humano? A utilização da inteligência artificial e da tecnologia dão eficácia ao acesso à justiça de todos os cidadãos? Para responder a estes questionamentos, parte-se do principal pilar normativo no direito brasileiro, a Constituição Federal, que assim veicula em seu texto o conceito:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (BRASIL, 1988).
Da simples leitura do dispositivo constitucional acima citado, nota-se que todos os cidadãos possuem a garantia de que se tiverem direito lesionado ou ameaçado, terão seus conflitos resolvidos pelo Poder Judiciário.
Neste contexto, a doutrina assim define:
A simples faculdade acesso à justiça acabou erigida num princípio, segundo o qual a todos é assegurado o acesso ao Judiciário, para defesa de seus direitos; servindo a expressão “acesso à Justiça” para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico: a) primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; e b) segundo, deve ele produzir resultados que sejam individual e socialmente justos (ALVIM, 2022).
Em resumo, o acesso à justiça deve ser em tese disponibilizado a todos e os resultados devem ser socialmente justos. Então, seguindo essa lógica, também seria papel da tecnologia e da inteligência artificial quando utilizadas no âmbito do direito cumprir com estas premissas, aqui, já esclarecidas como princípios do estado democrático de direito.
Será que pode ser aceita a ideia de que a inteligência artificial é meio justo e próprio utilizado para proferir decisões sem a utilização de um olhar humano? Será que somente a aplicação da legislação, por exemplo, é a melhor medida de justiça que se impõe?
Para responder às perguntas acima, imagine que a aplicação da lei é a única fonte do direito que a inteligência artificial possui armazenada em sua base de dados. Em resumo, a inteligência artificial aplica a legislação de forma direta ao caso real, sem a interpretação do olhar humano.
Para elucidar, imagine um caso em que uma lei estadual no estado X garante um benefício de R$500,00 para uma mãe que dê a luz a trigêmeos. Ocorre que o estado X, naquele momento, não possui a diligência e infraestrutura para acolher esta mãe e realizar o parto. Assim, se a mãe, for buscar realizar o nascimento dos trigêmeos no estado Y, buscando preservar a vida das crianças, então ela perderia o benefício garantido pelo estado X.
Pode-se considerar essa situação como justa? A impossibilidade do nascimento dos trigêmeos no estado X foi da genitora? A impossibilidade do nascimento é responsabilidade das crianças? A impossibilidade do nascimento é do Estado? Neste caso, se a situação fosse aplicada pela Inteligência Artificial “forte”, com base na lei, o benefício não seria deferido, tendo em vista que não foi cumprido o requisito legal, qual seja, o nascimento das crianças no estado X.
A pergunta que deve ser feita é: é justo que as crianças sejam penalizadas por uma situação que não deram causa? Com certeza, não! O direito à vida das crianças se sobrepõe às questões burocráticas estatais. Se não fosse aplicada a solução da causa através do olhar humano, a inteligência artificial forte aplicaria a lei e não garantiria o direito aos trigêmeos.
A situação acima reflete um caso verídico. Note-se da própria sentença (decisão de mérito) que foi proferida pelo juiz e corroborada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, nos autos de nº º 0301723- 72.2018.8.24.0012/SC:
Diante do todo exposto, com fulcro no art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil, JULGO PROCEDENTE o pedido formulado por M. S., L. S. e A. S. em face do Estado de Santa Catarina para conceder à parte autora o benefício assistencial previsto no art. 11 da Lei Estadual 17.201/2017, bem como para condenar o requerido ao pagamento das verbas pretéritas, devidas desde o requerimento administrativo (21.02.2018 – fl. 3 do doc. 10 - Ev. 1), descontados eventuais valores pagos em decorrência da antecipação dos efeitos da tutela, com a incidência de correção monetária pelo IPCA-E, a contar da data da publicação da presente sentença, e de juros de mora pelos índices da poupança, desde o requerimento administrativo (SANTA CATARINA, 2020).
O Poder Judiciário utiliza a tecnologia e a inteligência artificial nos procedimentos processuais, envolvendo atos que, em regra, não possuem decisão de mérito. Conceitua-se decisão de mérito aqui, resumidamente, como a decisão que possui o cunho de extinguir o processo em definitivo, pela efetiva aplicação do direito. Atualmente, o número de processos judiciais em andamento é infinitamente maior do que o número de servidores e trabalhadores, sendo que a tecnologia e inteligência artificial fraca contribuem para o seguimento destes processos.
Em conclusão, até o momento, percebe-se que há necessidade, cada vez mais, de o cidadão possuir o conhecimento tecnológico para que possa ter seu conflito resolvido. Especificamente, é necessário que o indivíduo possua um computador, acesso à internet, instale e acesse o software utilizado pelo Poder Judiciário, saiba como instruir o processo através deste software, entre outras questões envolvendo a tecnologia. Até o momento, é necessário que a decisão final do processo possua um olhar humano para que a decisão final seja estabelecida pelo Poder Judiciário.
Ao realizar a conexão entre Poder Judiciário, tecnologia, inteligência artificial e acesso à justiça, percebe-se que a inserção em um mundo hiper complexo e multifacetado com responsabilidades próprias. A ciência e o direito precisam caminhar em conjunto para que possam cooperar para uma sociedade mais justa e igualitária, principalmente no que envolve a celeridade e eficácia de direitos, como a possibilidade e eficácia de soluções tecnológicas.
Reforça-se que, com a utilização cada vez maior de ferramentas de inteligência artificial, contribuindo para a redução do número de processos existentes. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, “As soluções de Aprendizado de Máquina (machine learning) têm se destacado ao envolver um método de avaliação de dados que permite descobrir padrões e aperfeiçoar as tomadas de decisão” (CNJc, 2022).
Exemplo prático deste procedimento é a utilização do sistema Toth, desenvolvido pelo Superior Tribunal de Justiça, para verificação de admissibilidade recursal (significa a verificação, se o recurso apresentado pela parte possui os requisitos necessários, para apreciação do Tribunal). Após o processo de protocolo, o Toth faz recomendações de classe e assunto e, seguido da avaliação do servidor, o processo é distribuído à vara. O Conselho Nacional de Justiça informa sobre a quantidade de processos e vincula o percentual de precisão da plataforma.
“a precisão da plataforma é de pelo menos 50% e, como há a retroalimentação do modelo, o Toth está em constante aprendizado. O sistema já conta com 72 modelos de classe e 297 de assunto, utilizados em 444 mil petições. “O analista processual vai analisar o documento da petição inicial e a recomendação do Toth. Em 83% dos casos, a avaliação do analista é idêntica à do Toth”, constatou. A íntegra da pesquisa estará disponível no livro “Projeto ATHOS: O Superior Tribunal de Justiça Inserido na Era da Inteligência Artificial” (CNJd, 2022).
Em resumo, trata-se de uma importantíssima discussão. O processo eletrônico é uma realidade e a inteligência artificial fraca é cada vez mais presente no mundo jurídico. Atualmente, a inteligência artificial forte não possui o condão de substituir o ser humano para que possa estabelecer uma decisão de mérito 100% segura. Apesar disso, somente uma parcela da população se beneficia da “Evolução Digital do Direito” enquanto a camada menos beneficiada da população continua a sofrer com as penas advindas da impossibilidade que tem de adquirir ferramentas de tecnologia digital.
É necessário que o Estado realize a solução de conflitos de forma que consiga incluir de forma social e digital aquele brasileiro que não possui conhecimento de plataformas, meios, formas digitais e outras questões referentes à resolução de conflitos. Considerar o Poder Judiciário 100% “digital” quando grande parte dos brasileiros não possui computador e internet, bem como, sequer possui conhecimento de que possui acesso à justiça de forma informal e sem advogado (nos casos previstos na lei, ex: Habeas Corpus, Lei nº 9.099/95, Lei nº 10.259/01, outros), é mitigar a garantia do acesso à justiça, direito constitucional previsto.
Então, como forma de responder a pergunta realizada no título deste texto, uma das soluções para um meio democrático da inteligência artificial fraca seria a instauração de políticas públicas para inclusão digital e social do cidadão. A ciência, a tecnologia e o direito possuem pilares em comum e um papel importantíssimo para validação e efetivo cumprimento da resolução de conflitos e acesso à justiça de forma integral e digna, de modo que até o momento, o olhar humano não pode ser substituído de forma integral, principalmente nos atos que envolvem a inteligência artificial forte, bem como o acesso à justiça precisa ganhar a mesma proporção que a “softwerização” do Poder Judiciário está aplicando.
REFERÊNCIAS
Alvim, J. E. Carreira. Teoria Geral do Processo. 24. ed.Rio de Janeiro: Forense, 2022.
CNJa. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2022: Judiciário julgou 26,9 milhões de processos em 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/justica-em-numeros-2022-judiciario-julgou-269-milhoes-de-processos-em-2021/. Acesso em: 03 abr. 2023.
CNJb. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Estudo revela adaptações no Judiciário para atuação durante a pandemia. 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/estudo-revela-adaptacoes-no-judiciario-para-atuacao-durante-a-pandemia/. Acesso em: 02 maio 2023.
CNJc. Conselho Nacional de Justiça. Plataforma Sinapses. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sistemas/plataforma-sinapses/inteligencia-artificial/. Acesso em: 12 abr. 2023.
CNJd. Conselho Nacional de Justiça. Soluções de inteligência artificial promovem celeridade para o Poder Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/solucoes-de-inteligencia-artificial-promovem-celeridade-para-o-poder-judiciario/. Acesso em: 20 abr. 2023.
SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Sentença. nº 0301723- 72.2018.8.24.0012/SC. Relator: Juiz Rafael de Araujo Rios Schimitt. Diário Oficial do Estado. Florianópolis, 2020.
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