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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

Cine Geict – Corpos Instáveis

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No dia 26 de Setembro aconteceu a exibição de um projeto audiovisual experimental de autoria de Marisol Marini, que atualmente é pesquisadora de pós-doutorado no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), do Instituto de Geociências (IG), na UNICAMP, sob supervisão do prof. Marko Monteiro.

O encontro caracterizou-se como a retomada da atividade de exibição e debate de filmes, projeto intitulado Cine Geict, mas também como uma reunião do grupo voltada ao debate da pesquisa da qual decorreu o filme, bem como uma oportunidade de debater estratégias de divulgação científica. Além da apresentação e exibição, o filme foi debatido pela professora Daniela Manica e por todas e todos os presentes. Foi um debate rico e produtivo, um encontro entre antropologia e experimentação de linguagem que rendeu boas reflexões.

Corpos instáveis é fruto de um projeto selecionado para integrar a Residência do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NECMIS), do Museu de Imagem e Som de São Paulo (MIS), em 2018. Baseado em pesquisa etnográfica realizada no âmbito do doutorado em Antropologia Social (tese defendida em 2018, no Departamento de Antropologia, da USP) sobre a produção de tecnologias de assistência circulatória, os chamados corações artificiais. A proposta (assim como o tese) pretendia explorar artefatos tecnocientíficos, reflexões sobre seus pressupostos, o modo como eles transformam nossas concepções sobre o corpo e a própria definição de humano.

Descritas como tecnologias capazes de corrigir falhas, sobrepor-se e superar a natureza imperfeita de corpos por meio da fusão às máquinas, os corações artificiais podem ser aproximados à gama de tecnologias que possibilitam investigar as consequências do aprimoramento do humano, não apenas em termos especulativos, mas materiais.

Desde os primeiros dispositivos de circulação empregados em procedimentos cirúrgicos do tipo “open heart”, nos anos 1950, estes dispositivos têm permitido manter e prolongar a vida de pacientes, além de ter provocado uma reformulação da concepção de morte, não mais associada ao funcionamento cardiorrespiratório, mas definida pela função cerebral. Na “Era de Lázaro”, na qual a ressuscitação cardiopulmonar se tornou possível, as tecnologias empregadas para substituição da função cardíaca permitiram transformar as concepções de morte não só em termos de sua definição legal, mas seu significado, seus sentidos, e sua “manipulação” material.

A questão principal que a tese investigou foi a produção de instabilidades ontológicas em termos do que é humano e não-humano emergidas com a produção e utilização de tecnologias de assistência circulatória na contemporaneidade. A atenção dada às práticas experimentais laboratoriais, clínicas e cirúrgicas permitiu iluminar os arranjos heterogêneos por meio dos quais tais dispositivos médicos emergem.

Sinopse

Corpos instáveis é um projeto híbrido que alterna entre a linguagem naturalista e a poética visceral. O filme aborda a utilização de dispositivos médicos chamados de corações artificiais, que são tecnologias utilizadas como alternativa ao transplante de órgãos, como forma de prolongar e melhorar a qualidade de vida de pacientes com insuficiência cardíaca grave que aguardam na fila de espera por um transplante de coração. Fruto de uma pesquisa etnográfica iniciada em 2013 (fazer um rodapé sobre o doutorado), o projeto dialoga com a hipótese de que os corações artificiais podem operar como uma pedagogia para a morte e procura abrir espaço para o debate sobre os dilemas em torno do desenvolvimento e utilização desses dispositivos, investigando como é viver com tais tecnologias e lançando questões em torno das transformações nas concepções de corpo, vida/morte e do próprio humano. Na esteira de um movimento no campo documental que busca problematizar as fronteiras entre ficção e realidade, dissolvendo-as ou evidenciando sua porosidade, o filme recorre a linguagens diversas para abordar uma temática profunda, uma sombra existencial que acompanha a humanidade e se expressou de inúmeras formas em diferentes cosmologias. Partindo da defesa de Platão e dos estoicos, Melete thanatou, a respeito da filosofia como um exercício para a morte, inerente à vida, o filme pergunta se somos uma sociedade que cria aparatos, porém emprestando metáforas para lhes dar sentidos? Ou será que podemos considerar que essas tecnologias também sejam dispositivos de reflexão, de pensamento, que nos fazem ruminar sobre grandes questões existenciais?

Ficha técnica

Duração – 42min 22 seg

Formato – digital

Ano de produção – 2018

Local de produção – São Paulo

Equipe técnica

Imaginado, escrito e dirigido por Marisol Marini

Atuação: Julio Machado

Entrevistado: Rogério Ananias

Edição e montagem: Samantha Audi

Direção de fotografia: Juliana Farinha

Direção de arte: Guilherme Wanke

Produção: Lucia Reis

Apoio/financiamento – FAPESP/ MIS (Museu de Imagem e Som) / Secretaria da Cultura – Governo do Estado de São Paulo

Debate

Antes e após a exibição a realizadora contou sobre o processo de desenvolvimento, desde a motivação para realizar o projeto, quanto o processo de realização e produção de algumas cenas, as referências que informaram o projeto, as dificuldades e desafios enfrentados.

Em linhas gerais o projeto nasceu de um desejo de explorar linguagens, de buscar estratégias narrativas, de contar histórias, de disparar reflexões, inspirada na proposição de Donna Haraway a respeito da importância de se produzir aparelhos de contar histórias.

A pesquisa etnográfica da qual decorre o filme destinava-se à compreensão do processo de desenvolvimento e aprimoramento de corações artificiais, que são tecnologias projetadas para substituir ou auxiliar o órgão nativo doente, num contexto de escassez de órgãos para transplante em pacientes com insuficiência cardíaca grave, cujos quadros já não respondem às soluções medicamentosas e que precisam ter seus corações substituídos. Interessada nas práticas, nos processos, e em diálogo com teóricas interessadas na materialidade, a pesquisa percorreu recintos diversos, como centros cirúrgicos, laboratórios de bioengenharia, centros experimentais para a realização de testes com animais.

O caráter híbrido do filme é resultado da própria característica ciborgue do campo, do objeto/sujeito e do tema da pesquisa, justamente por conta dessas múltiplas existências. Aos testes de bancada (ou in vitro) se acoplavam os testes in vivo, realizados em animais não-humanos, bem como as avaliações em humanos. Essa diversidade de materiais, atores, coisas e discursos informaram a opção estética de misturar registros audiovisuais distintos, assim como a complexidade da temática motivou a decisão de não fazer um documentário puramente naturalista, expositivo, do tipo “talking heads”, que é um formato recorrente em vídeos etnográficos, decorrentes de pesquisa, ou com propósito documental. O projeto, no entanto, não abriu mão de entrevista, e ganha novas camadas/corpos com a participação do Rogério Tadeu Ananias, paciente que dá rosto/corpo ao filme, ao lado de Julio Machado, ator, que aceitou narrar boa parte do filme e encarnar os dilemas trazidos pela temática com seus músculos, ossos, pele, tendões, sensibilidade, respiração, olhar, enfim, deu corpo a esses questionamentos.

Uma das hipóteses da tese é pensar os corações artificiais como pedagogias para a morte/vida, ou seja, considerar que esses dispositivos explicitam a proximidade com a morte, adiando-a, de modo que os pacientes, seus familiares e os profissionais da saúde podem se preparar, ganham um tempo extra, uma possibilidade de escrever o epílogo de suas vidas, como o próprio filme e a tese sugerem. Ao serem empregados os corações artificiais afastam a morte, prolongando a vida, paradoxalmente mantendo-a sempre perto, à espreita. A tese busca descrever e analisar as implicações dessas tecnologias, enquanto o filme tem como mote as reflexões mais filosóficas por elas disparadas. Abordar antropologicamente a temática da morte, os esforços de prolongamento da vida no âmbito de produção de dispositivos médicos, tem direcionado a pesquisa a um diálogo com pesquisas sobre o antropoceno, assim como a necropolítica, investigações que tem enfrentando a iminência de emergência de fins e extermínios diversos.

O uso de dispositivos que permitem um controle extensivo da vida, dos órgãos e de sua interação com tecnologias auxiliares, permite um prognóstico cada vez mais refinado do funcionamento cardiovascular, de modo a possibilitar uma previsibilidade em relação à ocorrência do encerramento da vida. É nesse sentido que os corações artificiais podem operar como uma pedagogia, preparando para o encerramento da vida e possibilitando uma reconsideração sobre o modo de viver. A instabilidade instaurada por essas tecnologias prolonga, reinstaura e transforma vidas que sem elas teriam sido encerradas.

Por isso é importante explorar sua potencialidade como dispositivo de pensamento que nos permite imaginar novos corpos, novas ontologias políticas, novas utopias, novas maneiras de lidar com a vida, de encarar a morte. Assim como nas utopias dos novos mundos em ascensão e nas distopias dos mundos em dissolução, as incertezas instauradas pelos corações artificiais carregam condições de esperança, assim como de medo.

Catástrofes socioambientais como as de Brumadinho e Mariana, à ameaça aos povos indígenas perpetrado por um Estado cada vez mais truculento e disposto ao massacre de populações e seres diversos para o avanço do agronegócio e um modelo de desenvolvimento predatório, o extermínio da população negra e LGBTQIA, a eliminação da diferença, de corpos que encarnam a possibilidade de transformação, como sugere Paul Beatriz Preciado, são todos rastros de mundos ameaçados, de modos de existência em risco, de potenciais de transformações que por vezes ameaçam o neoliberalismo, e que potencialmente nos coloca diante da emergência de novos modos de vida e de pensamento.

Não se trata de pensar a morte como combustível no sentido que defendem muitos filósofos, para os quais a própria percepção da finitude seria a principal motivação para a filosofia, mas sim pensar nas potencialidades da morte em contexto de crise ou incertezas, na potencialidade da imaginação de novos futuros diante da existência de tecnologias que paradoxalmente nos aproximam e nos distanciam da morte.

No debate após o filme discutiu-se a adequação de sua linguagem e para quem o filme poderia se destinar, além de comentários e reflexões sobre a temporalidade das cenas (a lentidão da montagem em contraste à aceleração da tecnociência), e a densidade das reflexões filosóficas.

Em relação à temática do filme, ou seja, quanto às questões em torno do uso de órgãos artificiais e tecnologias de prolongamento da vida o debate deu-se em torno da dimensão corpórea da existência, da concretização literal do arranjo humano-máquina que a temática permite abordar, a respeito da condição de dependência da energia elétrica para a sobrevivência, além da percepção da instabilidade corporal também na nossa existência num momento em que diante das atuais tecnociência e biomedicina a instabilidade dos corpos deixa de ser uma questão e passa a ser uma condição. Exemplos etnográficos e aproximações com outros modos de vida foram trazidos por participantes do debate, gerando interessantes reflexões comparativas, e investigações dos limites dessas problemáticas.

Em relação à proposta de pensar tais dispositivos como potenciais pedagogias para a morte e para a vida, discutiu-se a respeito da extensão inatingível entre a vida e a morte, o que leva à relação com os mitos, tão explorados no filme, a relação entre o orgânico e o mecânico, o circuito da vida/terra e dos fluxos que não podem voltar. Quanto à essa pedagogia para a vida, em termos estéticos, um destaque foi dado à distinção entre o modo como os dispositivos mecânicos foram abordados, ou seja, sua apresentação mais lúdica, em contraste ao peso dramático, barroco, que parece sugerir a fisiologia como um fardo.

Interessantes sugestões surgiram no debate, como a proposta de pensar o filme como uma ficção mitológica, em referência à ficção científica, assim como pensar a estratégia de produção do filme como um modo de prolongar a vida da pesquisa de doutorado.

Foi um debate produtivo e instigante, confirmando os ganhos de se explorar linguagens, de buscar estratégias narrativas, ainda que elas não sejam nada consensuais.

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