Por Wagner Xavier de Camargo*
Zapeando a televisão quando por ocasião da visita de um amigo, enquanto conversávamos caímos num canal fechado de esportes que mostrava, naquele momento, os Jogos Paralímpicos de Inverno em Pyeongchang, na Coreia do Sul, competição esportiva de caráter olímpico para pessoas com deficiência. Mais especificamente era a prova de esqui cross-country, modalidade em que naqueles jogos estavam inscritos dois atletas brasileiros (Christian Ribera e Aline Rocha). Enquanto tentava identificar a categoria da prova (se feminina ou masculina), meu amigo tagarelava sobre a exoticidade desse tipo de evento e acerca do que considerava – atenção ao termo usado – “normal” no meio esportivo. Ele se referia àqueles corpos, que não “completamente inteiros”, ainda corriam o risco de sofrerem “outros acidentes” por causa do meio hostil do ambiente (neve e gelo).
Excetuando-se a aparente boa intenção do comentário e certa preocupação com os/as atletas nos espaços esportivos sul-coreanos entrincheirados de neve, o que informava meu amigo era certa noção de normalidade que habita o senso comum. Se as pessoas já se admiram quando assistem a cegos correndo, cadeirantes remando ou pessoas de muleta jogando futebol, quem diria quando assistem, pela televisão, corpos de atletas com deficiência competindo numa edição esportiva paralímpica de inverno? O que é considerado “normal” para esse senso comum não encaixa a “anormalidade” de corpos de atletas com deficiências deslizando no gelo, correndo ou surfando na neve.
Por trás de suas preocupações aloca-se o enfoque biomédico da deficiência, que se consolidou como paradigma no campo da saúde, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, no século passado. Do campo das práticas médicas para as considerações da sociedade ocidental foi um pulo, particularmente quando pessoas lesionadas e com deficiência passaram a ser comum entre nós. Suas visibilidades geraram reações (inclusive violentas em sentido simbólico) de pessoas que começaram a se preocupar com o lugar social desses sujeitos. Dessa forma, para a sociedade, a “experiência da deficiência” devia ser combatida com tratamentos, remédios, enxertos, próteses, a fim de que houvesse um “melhoramento” da condição dessas pessoas e para que elas pudessem, finalmente, serem “reencaixadas” socialmente – o termo da época era “integradas” no social. Para esse modelo, as limitações (físicas, sensoriais, mentais) seriam a única causa das discriminações enfrentadas por aquelas pessoas. A problemática da “normalidade/anormalidade” está a todo tempo posta em questão.
Atleta Japonês Hiraku Misawa na modalidade standing ski downhill masculino nas Paralimpíadas de Inverno 2018. FONTE: http://www.businessinsider.com/
Em que pese haja uma ampla discussão que vem sendo feita nos últimos 40-50 anos para que esse modelo seja abandonado em prol de um modelo social da deficiência (no qual se mostra que ela é produto de uma construção coletiva e que os processos discriminatórios são arquitetados pela própria sociedade), o modelo biomédico ainda embasa programas governamentais e não governamentais, de desenvolvimento e atendimento às pessoas com deficiência. Afinal, o que se espera são resultados visíveis e quantificáveis, que minimizem os danos e que coloquem tais sujeitos de volta à produtividade capitalista. Um argumento capacitista e corponormativo (McRuer, 2006).
Essa “corponormatividade” também invade o esporte, quando se acredita que a agilidade, a força, a virilidade, a destreza, dentre muitas características capacitantes, são qualidades que, no limite, atingem a performance esportiva, a qual será conquistada tão somente por corpos esguios, musculosos, eficientes e completos em si – com braços, mãos, pernas, olhos, orelhas e todas as partes que compõem essa ficção chamada “corpo”. Por isso, admira-se a corrida de 100 metros de um cego, os 200 metros borboleta de um amputado de braços, um salto em altura de alguém sem pernas. Afinal, como poderiam praticar a mais magistral das atividades, a que engendra a unificação dos sentidos em prol da performance máxima, com seus “corpos em partes”?
Os corpos que habitam o universo não-corponormativo trazem à baila o fato de que próteses, órteses e objetos outros de acoplamento corporal mudam a configuração de nossas percepções a ponto de nos questionarmos se tais práticas poderiam ser o prenúncio de novas estéticas e novas técnicas corporais no esporte (Camargo, 2014). Longe de estabelecer uma simples linha divisória entre corpos “normais” (ou hábeis/capazes) e “anormais” (ou inábeis/incapazes), visto que tal linha seria estapafúrdia, a problemática colocada é muito mais complexa e de difícil equacionamento.
Diante dessa encruzilhada, gosto de me lembrar de que o corpo que conhecemos hoje data de uns 500 anos apenas. Andreas Vesalius, um anatomista belga que viveu no século XVI, foi o primeiro a dissecar um cadáver humano, mostrando ao mundo suas partes e de que somos compostos. Passou para a história como “pai” da Anatomia moderna (Chassot, 1994). Seu feito foi excepcional porque demonstrou, por meio científico e fundamentado, que as descrições realizadas pelo médico-filósofo Claudio Galeno na Antiguidade Clássica não eram de um corpo humano – apesar de Galeno ter tido insights importantes sobre detalhes de órgãos, fluídos e funções de órgãos internos (Laqueur, 2011). Entretanto, e isso é importante, não somos mais o corpo humano descoberto e dissecado em detalhes pela Ciência do Renascimento.
E, em que pese se trabalhar ainda em Anatomia com a noção de normal e se tomar como pressuposto que o “normal é o mais comum em termos de ocorrência estatística”, reconhece-se que tal termo deve ser utilizado com cautela quando diz respeito ao corpo, “pois envolve um conceito complexo e de difícil definição que é o estado de saúde, entendendo aqui como saúde um conjunto de fatores (biológicos, sociais e psíquicos) e não apenas a ausência de doença” (Dangelo; Fattini, 2011, p. 6).
Se considerarmos que até o conhecimento anatômico em Medicina relativiza o termo normal, inclusive porque determinados órgãos ou sistemas internos podem responder de modo distinto de pessoa para pessoa (apesar de, tecnicamente, terem a mesma função), do ponto de vista externo a normalidade de um corpo também pode ser relativizada. Há grande variabilidade morfológica dentro da espécie humana e por isso se diz que ela é “politípica” (Dangelo; Fattini, 2011). Se biologicamente a variabilidade nos torna diversos, por que socialmente criamos barreiras de diferenciação de pessoas e de seus corpos? Qual é a distinção entre natural e artificial que justifica menosprezar (ou no caso de meu amigo, colocar na categoria “anormal”) corpos protetizados de pessoas com deficiência?
Isso sem dizer que as polêmicas atuais no mundo dos esportes vão além e envolvem uma tensão entre “normalidade/anormalidade” também relacionada ao sexo/gênero dos corpos. Desde que corpos transgêneros apareceram nos espaços esportivos e foram midiatizados, há um conjunto de opiniões adversas sobre eles. Refiro-me a casos amplamente divulgados como o das corredoras de atletismo Caster Semenya e Dutte Chamd e as polêmicas acerca de seus níveis de testosterona no sangue (o que as deixaria em estado de suspeição se são ou não biologicamente mulheres), ou ainda o da brasileira transgênero Tiffanny Abreu, no voleibol, que passou por tratamento hormonal e adequação química para viver como mulher. O questionamento sobre a possibilidade de existência desses corpos no mundo esportivo mostra que há algo de errado em pauta.
Ora, apenas porque o esporte encampa o binarismo de gênero e divide suas competições em categorias masculina e feminina em prol da igualdade de chances não significa que outros corpos não alinhados com esse binarismo não possam ali existir. A questão que se coloca nessa problemática é, justamente, a expectativa da sociedade sobre a transitividade de gênero. Como já afirmei outrora, “quando se considera o corpo de uma pessoa trans, em geral, tomam-se como padrões os corpos biológicos normativos, desconsiderando quase completamente as mudanças em curso postadas pelo corpo em transição” (Camargo, 2016). Pode ser bem provável que um corpo transgênero nunca “se acomode” em um gênero definido, como quer o senso comum. E, portanto, há que se entender que um “estado de normalidade” (sic) no tocante ao gênero nunca será deflagrado.
Penso que o mais importante de toda essa discussão que envolve essa noção equivocada de oposição entre “normalidade/anormalidade” no campo esportivo (e também na vida) resume-se ao fato de que corpos transgêneros e de pessoas com deficiência implantam dúvidas nos sistemas, sejam relativas à afirmação de uma estética de sexualidade hegemônica (a heterossexual), sejam em relação à corponormatividade instituída. O que me parece salutar é justamente os questionamentos e incertezas plantados por tais corpos, pois isso abre uma discussão profícua e bem maior sobre gestão política e técnica do corpo e da sexualidade nos espaços sociais – esportivos, inclusive (Camargo, 2017).
De um simples comentário e depois de nossa conversa, desejo que este meu amigo tenha relativizado suas ideias sobre “normalidade/anormalidade” de corpos. Mais do que isso, desejo que ele perceba que há aí em consideração uma ficção somatopolítica (nos termo de Paul B. Preciado, 2008) e que cada vez mais essa ideia de “corpo normal” se converte numa armadilha fatal.
* Wagner Xavier de Camargo é Pós-doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos/UFSCar, atua nos campos de Antropologia das Práticas Esportivas e Estudos de Gênero, na interface entre corporalidades e sexualidades. É membro efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e vice-líder do Grupo LELuS (Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e Sociabilidade), na UFSCar. Socio-fundador e pesquisador da Rede Brasil-Alemanha de Internacionalização do Ensino Superior (REBRALINT), criada em 2017.
Figura de capa Ilustração de Adreas Vesalius em Fabrica, séc XVI FONTE: http://www.vesaliusfabrica.com/en/original-fabrica.html
Referências Bibliográficas
CAMARGO, Wagner X. Corporalidades disruptivas? Considerações antropológicas sobre práticas esportivas específicas. Anais da 29ª. Reunião Brasileira de Antropologia (ABA), João Pessoa, 2014. p. 01-18 (mimeo).__________. A era dos invisíveis no esporte. LUDOPÉDIO, São Paulo, v. 102, n. 24, p. 1 – 5, dez/2017. Disponível em , acesso em 29 mar. 2018.
__________. Corpos Transgêneros no Esporte: algumas questões. Contemporânea – uma (quase) revista, Florianópolis, v. 6, p. 10 – 12, 07 dez/2016. Disponível em: https://www.academia.edu/31933761/Corpos_Transg%C3%AAneros_no_Esporte_algumas_quest%C3%B5es, acesso em 29 mar. 2018.
CHASSOT, Attico. A Ciência através dos tempos. São Paulo: Ed. Moderna, 1994. DANGELO, José G.; FATTINI, Carlo A. Anatomia humana sistêmica e segmentar. 3ª edição revista. São Paulo: Ed. Atheneu, 2011.
LAQUEUR, Thomas W. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Trad. Vera Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
McRUER, Robert. Compulsory Able-Bodiedness and Queer/Disabled Existence. In: Lennard J. Davis (ed). The Disability Studies Reader. 2ª ed. New York/London: Routledge, 2006. p. 88-99.
PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Madrid: Espasa, 2008.
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