Uma introdução por Thais Lassali
Em quem você pensa quando imagina um cientista? As imagens do cinema e da televisão não raramente nos mostram um homem esquisito, meio louco, meio ermitão, de genialidade indubitável e fatalmente branco, em meio a tubos de ensaio e engenhocas tecnológicas. Sabemos, é claro, que se trata de um estereótipo. Os cientistas não são seres fantásticos com capacidades praticamente mágicas. Ainda assim, segundo a física Zélia Maria da Costa Ludwig, algo se mantém dessa imagem fantasiosa. Mais precisamente, seu gênero e sua cor, pois, frequentemente, segundo ela, as pessoas pensam em um senhor branco de barba.
Ludwig atualmente é professora do Departamento de Física da Universidade Federal de Juiz de Fora e criadora do projeto “Para Meninas Negras na Ciência” e foi uma das entrevistadas do trabalho de conclusão de curso “Mulheres negras em movimento na universidade”, de autoria de Poliana Martins, então aluna da Especialização em Jornalismo Científico do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Orientado por Marta Kanashiro no âmbito do projeto de pesquisa “Comunicação, decolonialidade e interseccionalidade”, o referido TCC tem como objetivo expor diversas facetas da transformação pela qual as universidades públicas brasileiras passaram a partir da adesão a políticas de ações afirmativas, tais como as cotas raciais. O texto também foi publicado em sua íntegra em forma de dossiê na revista ComCiência em novembro de 2024, pelo advento do mês da consciência negra.
Poliana é uma das mais novas integrantes do GEICT. Atualmente, ela faz mestrado em Divulgação Científica e Cultural pelo Labjor, além de atuar como jornalista científica, com apoio da Bolsa Mídia Ciência da FAPESP. Nesse projeto ela fará a cobertura da área socioambiental do programa AmazonFACE, co-coordenado pelo líder do GEICT, Marko Monteiro (e pela Profa. Maira Padgurschi, do CNPEM). Abaixo, reproduzimos “Os Desafios de Decolonizar o Jornalismo Científico”, editorial do dossiê publicado na ComCiência.
O trabalho de Poliana Martins combina diversos formatos jornalísticos, como a reportagem, a entrevista e a resenha, para apresentar uma abordagem aprofundada sobre o impacto que o aumento de alunos e professores pretos e pardos teve no cotidiano universitário. Ao mesmo tempo, evidencia as estratégias tomadas por essas pessoas ao adentrar num ambiente que, até algumas décadas atrás, não chegava nem perto de refletir a realidade racial brasileira. Criar coletivos acadêmicos, redes de apoio e projetos como o de Zélia Ludwig são alguns dos exemplos trazidos pelo TCC de tais estratégias.
Os dois grandes fios condutores do texto de Poliana se relacionam intimamente: a interseccionalidade e a reorientação de perspectiva que o aumento da presença de pessoas negras na universidade pode causar na produção científica. O conceito de interseccionalidade sugere que os mais diferentes marcadores sociais, tais como o gênero, a raça, a classe, a orientação sexual, a idade, a escolaridade, dentre outros, se influenciam e interagem mutuamente. Trocando em miúdos, de um ponto de vista interseccional, não é possível separar a vivência e a história de vida de uma mulher negra, pobre, heterossexual, jovem e universitária de cada uma dessas categorias. É preciso compreender como todas elas ocorrem e têm agência em conjunto e de maneira simultânea. Foi justamente isso que a Poliana explicou, em entrevista, ao Blog do GEICT:
“O conceito de interseccionalidade sugere que diferentes opressões não atuam isoladamente, mas se entrelaçam, criando experiências únicas de marginalização. Essa abordagem permite entender como múltiplas desigualdades se combinam, criando obstáculos que não são facilmente percebidos quando se analisam opressões como racismo ou sexismo de forma isolada. Por exemplo, as dificuldades enfrentadas por mulheres negras não podem ser explicadas apenas como problemas de gênero ou de raça, mas como a interseção dessas opressões. Isso encoraja a pensar em soluções que integrem raça e gênero, capazes de promover intervenções específicas para alcançar maior equidade.”
Seguindo o exemplo dado pela pesquisadora, uma mulher negra não é “apenas” mulher ou negra, mas mulher e negra. A misoginia e o racismo evidentemente impactam diretamente a vida de mulheres negras pobres e de mulheres negras ricas, mas, muitas vezes, de modos diferentes. É justamente para isso que a ideia de interseccionalidade chama atenção. Ainda que já fizesse parte dos discursos dos movimentos sociais feministas e negros das décadas de 1970 e 80, esse conceito apenas tomou forma e ganhou o nome pelo qual o conhecemos hoje em 1989, no texto “Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color”, da jurista estadunidense Kimberlé Crenshaw. Ele é comumente associado ao estudo de marcadores sociais da diferença, ou então de operadores sociais que marcam a desigualdade de relações, oportunidades e possibilidades nos mais diferentes espaços sociais.
Assim, é possível afirmar que o ponto de vista interseccional questiona a naturalização de certas explicações e de certas apreensões científicas, procurando qualificá-las e complexificá-las. A ideia de interseccionalidade também permite interrogar os limites da suposta neutralidade sobre a qual diversas áreas científicas, especialmente as STEM, constroem sua autoridade, entendendo que todo cientista é alguém (como nos questiona Zélia Ludwig, quem?) e que todo conhecimento parte de um conjunto de convicções que têm sua própria história, seu próprio contexto, sua própria localização no tempo e no espaço.
O trabalho de conclusão de Poliana Martins, bem como seu dossiê publicado na ComCiência, acabam por aplicar essa ideia de que os marcadores se influenciam mutuamente no espaço universitário e na construção do conhecimento ali produzido. Dessa forma, a autora acaba, em primeiro lugar, apontando para um problema: os espaços decisórios e de liderança dentro dos grupos de pesquisa, dos departamentos e dos laboratórios universitários ainda é dominado, majoritariamente, por homens brancos. Ao mesmo tempo, Poliana mostra possíveis soluções que já estão sendo colocadas em práticas nos espaços científicos e de vivência dentro da universidade pública brasileira: a produção de um conhecimento centrado em marcadores diferentes daqueles habitualmente operados e o interesse do jornalismo científico e dos estudos sociais de ciência e tecnologia nos efeitos sociais e cotidianos nessa mudança de olhar. Convidamos, portanto, à leitura do editorial do dossiê de Poliana e Marta Kanashiro, reproduzido em sua totalidade logo abaixo.
OS DESAFIOS DE DECOLONIZAR O JORNALISMO CIENTÍFICO
por Poliana Martins e Marta Kanashiro
Aspectos como verdade, neutralidade, imparcialidade e objetividade delineiam o fazer jornalístico considerado convencional ou hegemônico ainda que muito debate já tenha ocorrido sobre os entraves para uma produção textual que de fato atenda a todos eles. Ijuim (2023), ao tratar da emergência de decolonização do jornalismo, afirma que é também por meio da observação desses aspectos que podemos notar que “os modelos jornalísticos em prática em nosso país comportam heranças da racionalidade moderna [...] Tais modelos incorporam uma visão eurocêntrica/nortecêntrica não apenas nas técnicas, como também nos aspectos éticos e estéticos” (IJUIM, 2023, p. 76). Esse autor ainda considera como algumas implicações da colonialidade no pensar e no fazer jornalísticos, a construção e o reforço de estigmas e preconceitos que desumanizam o jornalismo.
Patrício (2023) destaca os mesmos aspectos de um jornalismo convencional ao tratar, por oposição, da produção de um jornalismo periférico. Este autor apresenta o que seriam as bases da episteme moderna que estrutura e orienta uma comunicação tradicional: “O tripé que sustenta a lógica colonial se estrutura a partir da hierarquia dos saberes, em torno da ciência positiva (colonialidade do saber); o que levou à estratificação eurocêntrica dos povos (colonialidade do ser); definindo um projeto civilizatório (colonialidade do poder) (Torrico, 2018). A comunicação, enquanto área de conhecimento, epistemicamente toma emprestado para si esse mesmo tripé para definir-se. As linhas temáticas dão prioridade a questões próprias de seu contexto de origem”. (PATRÍCIO, 2023, p. 95).
É neste sentido que, por exemplo, o que é considerado noticiável é muitas vezes atravessado e demarcado pela territorialidade:
A dimensão de territorialidades no jornalismo se insere num contexto mais amplo. A oposição entre centros e periferias aloca o debate em perspectivas históricas que dão conta de uma discussão sobre como essas territorialidades periféricas foram silenciadas; como as realidades foram sendo homogeneizadas na perspectiva de determinados interesses, de um controle social. (PATRÍCIO, 2023, p. 95).
Esses autores nos ajudam a delinear os primeiros questionamentos que surgiram nas reuniões realizadas para a produção deste TCC. Afinal: quais saberes, territórios e vozes são privilegiados no jornalismo científico? O que se define como uma fonte adequada ou como personagem nessa produção jornalística, quando consideramos os aspectos centro e periferia? Ainda que a decolonização do jornalismo já esteja em debate, é possível considerar a possibilidade de que a desestabilização de perspectivas modernas e coloniais também atravesse o jornalismo científico?
No Brasil, existe uma trajetória histórica de movimentos de produção jornalística que promovem uma perspectiva decolonial, abordando temas frequentemente marginalizados pelas redações tradicionais e produzindo conteúdos que muitas vezes são ignorados ou invisibilizados pelos grandes jornais. Esses movimentos trazem consigo um discurso crítico e socialmente engajado, voltado contra desigualdades sociais e marcado por pautas e posicionamentos considerados transgressores. Um exemplo notável e histórico é o Clarim da Alvorada (1924), talvez o mais proeminente no estado de São Paulo, que se destacou por sua atuação nesse campo (SANTOS, 2021).
Na contemporaneidade, o que se configura como “jornalismo periférico” (FELIX, 2023) aparece como uma das práticas que vem cumprindo o papel de dar voz aos grupos marginalizados da sociedade, não apenas como objetos de observação ou como pautas esporádicas — como frequentemente fazem os veículos de mídia ao tratar das periferias urbanas —, mas como protagonistas de um discurso que visa desconstruir estereótipos e produzir novas perspectivas no jornalismo. Esse movimento rompe com o que Torrinco (2018) denomina “o tripé que sustenta a colonialidade” no discurso jornalístico. Assumindo o controle da condução de suas narrativas, esses comunicadores buscam relatar as múltiplas realidades vividas na cidade a partir de seu olhar, linguagem e ponto de vista, profundamente engajados com a luta pela redução das desigualdades sociais. Dessa forma, deslocam os sentidos do jornalismo hegemônico, que tradicionalmente se assume como imparcial e neutro, criando abordagens para a prática jornalística.
Inspirando-se nos critérios estabelecidos por Barbosa (2022), a escolha da pauta para a série “Mulheres negras em movimento na universidade” adotou uma abordagem decolonial e interseccional, acionando princípios do fazer jornalístico — identificar o que constitui notícia, organizar informações, planejar as etapas de apuração e antecipar a edição do conteúdo a partir de três princípios: primeiro, considerar as experiências de mulheres negras em coletivos universitários e espaços que promovem o conhecimento e o pensamento afrodiaspórico como fontes principais; segundo, priorizar a voz de mulheres envolvidas em coletivos de alcance nacional, como Criola; e terceiro, referenciar pesquisas acadêmicas (artigos, teses, dissertações) que tenham coletivos de mulheres negras como tema central.
Esses processos foram conduzidos a partir de uma experimentação sob a ótica de uma prática jornalística decolonial, informada por uma abordagem interseccional. “Afinal, pode-se realmente discutir jornalismo decolonial sem incorporar uma perspectiva interseccional?” (SILVA; AGUIAR, 2023). Essa pergunta surge como provocação que orienta a escolha entre as variadas propostas que buscam se orientar pela prática do jornalismo decolonial, escolha por uma produção decolonial que tenha a interseccionalidade como núcleos metodológico e epistêmico.
Lélia Gonzalez (2020), a partir de investigações, que relacionam as categorias de raça, classe e gênero, sobre os aspectos socioculturais e políticos, no Brasil propõe a interseccionalidade como modelo analítico para observarmos como múltiplas formas de opressão (raça, gênero e classe) interagem para criar situações que reforçam posições de vulnerabilidade. Em suas investigações a autora também chama atenção para as heranças coloniais da América Latina, apontando para um modelo de análise que observa com seriedade a necessidade de considerar as especificidades históricas e culturais no estudo das opressões.
Para entrelaçar raça, classe e gênero no tema da circulação do conhecimento, a produção da pauta adota uma perspectiva centralizada nas vozes de mulheres negras brasileiras — uma presença frequentemente marginalizada nas representações sociais, especialmente nas mídias tradicionais. Esse esforço é motivado pela compreensão de que, para avançar em direção a uma prática jornalística verdadeiramente decolonial, é preciso contrastar a hegemonia de figuras masculinas e brancas que dominam a produção e as decisões editoriais nas redações.
Essa abordagem ressoa com a análise de Keisha-Khan Perry (2007), que, ao examinar o ativismo de bairro das mulheres negras em Salvador, evidencia como suas narrativas contestam a “dominação racial e sexual” e representam uma “reivindicação coletiva de poder através das redefinições da negritude”. Perry destaca que essas narrativas emergem como uma resistência à gentrificação e às histórias oficiais, que frequentemente apagam a existência negra das cidades. Essa conexão reforça que o jornalismo decolonial também implica a disputa de narrativas, um terreno onde as histórias de mulheres negras questionam e contestam as representações dominantes. Essa perspectiva é compartilhada por autores como Bruck e Brito (2023), que consideram o jornalismo decolonial como um espaço para contar histórias alternativas, articulando-se com o ativismo político e social.
Além disso, Albuquerque (2022) e Aguiar (2023) oferecem uma crítica contundente ao sistema acadêmico global como agente colonial, defendendo mudanças curriculares nos cursos de jornalismo, inclusive científico, para promover uma decolonização efetiva no campo, reorientando as práticas de ensino e as epistemologias que sustentam o conhecimento tradicional.
Neste TCC, desenvolvido a partir de uma série de reportagens, busco praticar um jornalismo científico, voltado para espaços de produção da ciência, na direção de decolonizar esses espaços e o próprio fazer jornalistico. É por meio desse fazer que se ressalta como as práticas jornalísticas tradicionais ainda são influenciadas por perspectivas eurocêntricas. Enquanto o jornalismo convencional frequentemente perpetua legados coloniais, o jornalismo periférico vem propondo um jornalismo decolonial que desafia as narrativas predominantes, reconhecendo e validando as experiências de grupos historicamente marginalizados.
Integrar saberes indígenas, quilombolas, negros e amarelos no jornalismo científico, contudo, apresenta uma série de desafios. Primeiramente, há obstáculos institucionais, pois a mídia tradicional tende a resistir à inclusão desses conhecimentos. Além disso, enfrentam-se barreiras de linguagem, uma vez que é fundamental respeitar as especificidades culturais e linguísticas desses grupos. Por fim, há a necessidade de desafiar as concepções tradicionais de ciência, que frequentemente deslegitimam conhecimentos não ocidentais, convocando sempre a ciência branca ocidental como fonte que representa a expertise adequada para tratar desses temas. Isso exige uma mudança de paradigma de como se compreende e se pratica a divulgação científica e de jornalismo científico.
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