Por Douglas Leite*
A crise de abastecimento hídrico vivida pela Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) nos anos 2014-2015 expôs de forma singular o uso do discurso como instrumento de gestão de uma infraestrutura sociotécnica. Agindo sobre a interpretação do episódio, os atores responsáveis pela governança do abastecimento de água na RMSP delinearam quatro aspectos centrais para sua condução:
O clima como agente crítico, único responsável pela intermitência do abastecimento público de água;
A instauração do conceito de ‘crise hídrica’, possibilitando acesso a recursos e providências emergenciais;
O consumo individual como principal fator a ser controlado para mitigação e superação da crise;
A adoção da propaganda como ferramenta de mobilização coletiva.
Ainda, por meio da instrumentação do discurso, foi possível reificar o modelo então vigente de gestão da infraestrutura de abastecimento hídrico e da agenda política, centrados na construção de grandes obras para exploração de novos mananciais, argumentadas como única solução possível diante de uma situação supostamente incontrolável e imprevisível. Por fim, nesse cenário esses atores também puderam, discursivamente, se retratar como aqueles responsáveis pela bem-sucedida superação da crise.
Essas conclusões resultam de pesquisa de dissertação que analisou 62 comunicados publicados à imprensa pelo Governo do Estado de São Paulo (Gesp) e pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) referentes à crise de abastecimento que afetou a RMSP no biênio 2014-2015. Naquela conurbação, 30 dos 39 municípios têm suas infraestruturas de abastecimento hídrico e de esgotamento sanitário operadas pela Sabesp, sociedade anônima de economia mista constituída em junho de 1973. A empresa também é responsável pelo fornecimento de água por atacado para outros cinco municípios – São Caetano do Sul, Mogi das Cruzes, Guarulhos, Mauá e Santo André -, perfazendo, em termos de abastecimento hídrico, 89,7% dos municípios da RMSP.
Como o mercado de distribuição de água e de coleta de esgotos tende a monopólio (perceba que não há duas ou mais empresas concorrendo sobre a prestação desses serviços em um mesmo território), a Sabesp – e consequentemente o Gesp também – controla praticamente todo o saneamento básico da RMSP. A monopolização não se restringe ao mercado, mas se estende aos dados de medição de pressão, reservação, cadastros de consumidores e, consequentemente, à geração de informações e versões sobre como o saneamento se dá e como ele deve se desenvolver. Em tempos de crise, esse poder emerge no discurso, tanto por aquilo que ele contém como por aquilo que ele omite, senão vejamos:

Típica imagem da “crise hídrica” veiculada nas mais diversas mídias. FONTE: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/08/01/politica/1406847379_070354.html
1. O discurso do clima como único responsável pela falta de água
Em 2014, a comunicação oficial sobre a questão do abastecimento na RMSP foi inaugurada pelo Gesp, em release de 10 de fevereiro. Nele, o então governador Geraldo Alckmin imprimiu a tônica argumentativa que seria usada para conduzir a abordagem sobre o evento crítico durante toda a sua vigência: “o calor está muito forte. É o verão mais intenso das últimas décadas” (SÃO PAULO, 2014). Esse discurso concentra um processo de construção conceitual paulatino e constante, observado em episódios semelhantes ocorridos há décadas. Eis alguns deles:
12 de outubro de 1994: “se não chover em quinze dias, haverá racionamento para a zona leste da capital paulista”,– Antônio Felix, Secretário de recursos hídricos, saneamento e obras do Estado de São Paulo[1];
15 de maio de 2000: “Racionamento se torna inevitável devido à estiagem” – Sabesp[2];
17 de abril de 2001: “O sistema Alto Cotia sofre as consequências da estiagem do ano passado, considerada a maior dos últimos cem anos” – Sabesp[3];
5 de julho de 2001: “Estamos enfrentando a pior estiagem dos últimos 70 anos” – Ariovaldo Carmignani, presidente da Sabesp[4].
Apesar de o fator climático ser uma variável importante, a governança do abastecimento de água tratada em regiões metropolitanas engloba uma série de elementos muito mais ampla que a falta de chuvas. Ausentes dos discursos praticados, aspectos como uso e ocupação do solo, o processo de licenciamento ambiental para atividades econômicas, a integração legal e política entre governos federal, estadual e municipal, a gestão preventiva dos vazamentos não visíveis presentes nas tubulações, a tabela tarifária vigente em cada município e a política de educação ambiental praticada nas escolas são alguns deles.
2. A instauração do conceito de ‘crise hídrica’
Durante entrevista coletiva realizada em 28 de fevereiro de 2014, a então presidente da Sabesp, Dilma Seli Pena, usou pela primeira vez o termo ‘crise hídrica’, buscando salientar as medidas adotadas pela empresa buscando garantir o abastecimento hídrico para a RMSP, diante do rápido esgotamento do Sistema Produtor de Água da Serra da Cantareira (Sistema Cantareira), responsável pelo abastecimento de 5,3 milhões de pessoas[5].
O termo ‘crise’, carregado de valores como subitaneidade, imprevisibilidade, abrupta ruptura do sistema vigente e duração limitada (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998), surge no discurso como um recurso que possibilita (i) colocar em cheque a responsabilidade prévia sobre suas causas, (ii) priorizar decisões e recursos emergenciais para sua mitigação e (iii) valorar e potencializar seu gerenciamento e solução, transformando sua superação em uma conquista vitoriosa, versão essa de grande valia como capital político em um ano eleitoral como foi aquele 2014.
3. O consumo individual como principal fator a ser controlado para mitigação e superação da crise.
A população que habitava a RMSP durante o biênio 2014-2015 foi trazida pela Sabesp e pelo Gesp para o centro da arena, de forma a obter sua empatia e a dividir os sacrifícios que uma situação de escassez impõe. Sobretudo, ao longo do ano de 2014, o estrito enquadramento sobre a relação entre o consumo de água e a crise de abastecimento, reforçado insistentemente no discurso da Sabesp e do Gesp por meio de diversos meios de comunicação, ganhou vultos de responsabilização pelo agravamento do episódio sobre aquela parcela da população que insistia em não economizar água.
4. A adoção da propaganda como ferramenta de mobilização coletiva.
Antes do biênio 2014-2015, o discurso sobre um possível futuro de escassez hídrica já movimentava grandes somas de recursos em peças publicitárias e projetos de comunicação social destinados à conscientização da população para a mudança de hábitos relacionados ao consumo de água, o chamado ‘programa do uso racional da água’ – entre 2002 e 2012, o gasto da Sabesp com propaganda dividida entre projeto de despoluição do rio Tietê e incentivo à economia de água foi de R$ 557 milhões[6] -; mas com o advento da crise de abastecimento, além da destinação de recursos para os mesmos fins, porém agora com o objetivo de angariar o apoio da população para ações de economia[7], foram necessárias, de acordo com o discurso proferido pela Sabesp e pelo Gesp, obras emergenciais que visavam buscar novas fontes de água, interligações entre sistemas produtores e localização e eliminação de vazamentos, sob o argumento de que buscavam não apenas superar o momento crítico, mas igualmente se preparar para o risco de um possível novo evento[8].
Palavras pelo cano
Uma infraestrutura capilar, presente na quase totalidade das habitações, empresas e indústrias lotadas na RMSP, com uma intensidade tecnológica que exige grande conhecimento especializado em seu desenvolvimento e em sua operação; um mercado de consumo essencial, impreterível e insubstituível, com características tendentes a monopólio; um produto cuja dependência social, simbólica, econômica e cultural torna seu produtor um agente onipotente e onipresente. Essas características tornam o sistema de abastecimento de água uma arena onde comungam atores e fatores que nos permitem entender o grau de cordura do arranjo social vigente.
Nesse contexto, o gerenciamento dos discursos que envolvem a governança do abastecimento hídrico em uma região metropolitana comporta aspectos técnicos e sociais, que, adequados de determinada maneira, geram resultados diversos. Quando situada dentro de um contexto crítico, a infraestrutura de abastecimento de água exige tanto ações emergenciais sobre seus aparatos operacionais, como válvulas, motores, tubulações e torneiras, como sobre sua gestão discursiva.
No caso da crise de abastecimento hídrico ocorrida durante o biênio 2014-2015 na RMSP, a estratégia discursiva empregada pela Sabesp e pelo Gesp envolveu os dados e informações gerados pela rede de aparatos tecnológicos que compõem aquela infraestrutura, moldando motivos, forma e consequências do evento crítico, direcionando decisões e agendas políticas. O episódio salienta, sobretudo, o papel do discurso como instrumento de ação sobre infraestruturas sociotécnicas e sobre as políticas públicas que nelas orbitam.
*Douglas Leite é membro do GEICT, Relações Públicas com vinte anos de atuação na área de saneamento básico e mestrando do Departamento de Política Científica e Tecnológica, Instituto de Geociências, UNICAMP.
Notas
[1] Secretário prevê rodízio dentro de 15 dias. O Estado de São Paulo, 12 de outubro de 1994, p. C3.
[2] 3 milhões foram afetados em 2000. Folha de São Paulo, 23 de março de 2001, p. C7.
[3] Racionamento começa para 300 mil pessoas. Folha de São Paulo, 17 de abril de 2001, p. C4.
[4] Sabesp investe R$ 4 milhões em propaganda por corte de água. Folha Online, caderno Cotidiano, 5 de julho de 2001.
[5] Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo). Sistemas produtores de água da Região Metropolitana de São Paulo. Disponível em http://site.sabesp.com.br/site/interna/Default.aspx?secaoId=36. Acesso em: 5 de fevereiro de 2017.
[6] Estatais paulistas respondem por metade dos gastos do governo com propaganda. O Estado de São Paulo, 31 de março de 2013, p. A2. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,estatais-paulistas-respondem-por-metade-dos-gastos-do-governo-com-propaganda,1015386. Acesso em: 22 de janeiro de 2017.
[7] Falta de água faz Justiça liberar propaganda da Sabesp em período eleitoral. UOL Eleições. Disponível em: . Acesso em: 10 de novembro de 2016.
[8] Artigo Sabendo usar propaganda, não vai faltar voto, de Eugênio Bucci (ECA – USP), confirma essa análise. O Estado de São Paulo, 1 de maio de 2014, p. A2. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,sabendo-usar-propaganda-nao-vai-faltar-voto-imp-,1160972. Acesso em: 10 de novembro de 2016.
Referências
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. 11a. ed. Brasília: Editora UNB, 1998.
SÃO PAULO (ESTADO). Alckmin expande programa de redução do consumo de água para mais de 1.500 escolas. Comunicado à imprensa publicado em 10 de fevereiro de 2014. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.gov.br/sala-de-imprensa/release/alckmin-expande-programa-de-reducao-do-consumo-de-agua-para-mais-de-1-500-escolas. Acesso em: 5 jan. 2017.
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