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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

Foto do escritorMarko Monteiro

Governança por meio de futuros especulativos na Amazônia *


* Texto publicado originalmente no Fieldsights da Society for Cultural Anthropology. Disponível em: https://culanth.org/fieldsights/governing-through-speculative-futures-in-the-amazon#PT


Futuros especulativos


O experimento AmazonFACE é uma cooperação científica multinacional em larga escala entre o Brasil e o Reino Unido. O objetivo é antecipar o futuro da atmosfera e seus impactos na floresta usando a tecnologia FACE (Free Air Carbon Dioxide Enrichment): injetar dióxido de carbono (CO2) diretamente em parcelas de vegetação controladas para imitar uma atmosfera do futuro e permitir que os cientistas entendam como a floresta se comportaria em condições de CO2 elevado.


De certa forma, é uma tentativa de substituir um futuro desconhecido por um modelo de futuro controlado. A substituição aqui opera em diferentes escalas e camadas: uma parcela controlada substitui a atmosfera da Terra e Manaus substitui toda a Amazônia, ou mesmo todas as florestas tropicais do planeta.


A substituição também é uma estratégia discursiva: alguns cientistas argumentam que, uma vez que conheçamos os impactos potenciais do CO2 elevado, podemos tentar substituir um futuro caótico e desastroso por um futuro mais mitigado - e adaptado, por meio de políticas robustas e eficazes baseadas na ciência e destinadas a uma melhor resiliência. E, no entanto, há uma melancolia implícita e distópica nessas tentativas de antecipar o futuro: perderemos a luta para mudar os padrões de emissão? É infrutífero mudar os padrões de produção e de consumo, e mais prático adaptar-se a atmosferas alteradas?


Por meio da tecnologia FACE, os cientistas esperam ter um vislumbre do futuro das mudanças climáticas, seus efeitos no ciclo da água, carbono e solo, e na biodiversidade humana e não humana da Amazônia. Eu chamo isso de futuros especulativos baseados na ciência. O sistema experimental contém em si imaginários do futuro, que por sua vez condicionam o presente. A ciência é vista como tudo menos especulação e, no entanto, há um aspecto narrativo e imaginativo na modelagem de fenômenos em grande escala, mesmo que com base em resultados experimentais.


Por meio dos dados e interpretações que emergem desses experimentos, uma imagem do futuro tornar-se-á palpável em uma miríade de formas diferentes: modelos de computador, gráficos, amostras de plantas e solo e análises numéricas dos ciclos do carbono. Isso pode ajudar a orientar políticas, conhecimento sobre a floresta e a ciência do clima e da Amazônia. Essa coprodução de agendas políticas e científicas torna esse evento experimental poderoso como um lócus de materialidade e imaginação.


Cientistas, técnicos e visitantes olham para a infraestrutura do experimento FACE durante uma visita ao local; Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, Manaus
Cientistas, técnicos e visitantes olham para a infraestrutura do experimento FACE durante uma visita ao local; Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - INPA, Manaus, 17 de outubro de 2023. Foto de Marko Monteiro.

Para entender o experimento, utilizo a ideia de sistema experimental: uma "máquina para produzir o futuro". A formulação de Rheinberger nos ajuda a entender o experimento como um evento, um sistema e uma ferramenta de raciocínio. É como uma forma de produzir diferença, por meio de resultados inesperados. Os experimentos podem ser pensados como produtores de substituições: seja por meio de transformações da "natureza" em "dados" no sentido latouriano, seja por meio da substituição de visões que temos do futuro por dados experimentais sobre esses futuros.


O programa AmazonFACE é, portanto, uma prática de futuring, uma imaginação socialmente performativa que permite que consequências práticas e materiais tomem forma. Pode ser visto como "trabalho de horizonte"; trazendo um futuro desconhecido ou descontrolado para o presente como objeto de conhecimento e intervenção". Como uma forma específica de experimento de laboratório ao ar livre, as parcelas do AmazonFACE são práticas futuras ao mesmo tempo em que realizam a própria experimentalidade: por meio de dados sobre como a floresta se comporta sob CO2 elevado, os dados do FACE ajudam a tornar diferentes futuros amazônicos imagináveis, viáveis e palpáveis.


O experimento FACE


Muitas coisas me atraíram para o AmazonFACE: o tamanho e o escopo do projeto; a novidade de construir uma infraestrutura tão grande no meio da floresta; mas, acima de tudo, a ideia mesma de que tal experimento poderia ser construído e conduzido. Essa concepção de um experimento ao ar livre em grande escala me atraiu imediatamente como uma oportunidade fascinante e única de participar e observar a big science ambiental em ação. Além disso, seria também uma oportunidade para realizar esse movimento próprio do campo CTS – Ciência, Tecnologia e Sociedade – observar e participar de práticas de produção do futuro por meio da ciência e da tecnologia.


Vista aérea dos dois lotes do AmazonFACE já construídos em Manaus, Brasil. Foto de Marko Monteiro.
Vista aérea dos dois lotes do AmazonFACE já construídos em Manaus, Brasil. Foto de Marko Monteiro.

Os experimentos são um lócus clássico para etnografias CTS, dentro e fora dos laboratórios. E a própria Amazônia também é um local clássico para a produção de conhecimento etnográfico sobre a ciência: a disputa em curso sobre a potencial "savanização" da Amazônia já apareceu no clássico Pedofil de Boa Vista de Latour. A visão de Latour já abria espaço para as ideias de vislumbrar futuros amazônicos: a floresta avançava sobre a savana? Ou seria o contrário? Esse enigma aparentemente simples tem uma força incrível para ajudar a explicar o futuro de um imenso bioma, que por sua vez ganhou destaque em nossos próprios imaginários sobre sustentabilidade, mudanças climáticas, cooperação internacional e geopolítica.


De fato, a hipótese da savanização é um dos pontos de partida importantes para o AmazonFACE (como narrado pelos próprios cientistas): há um potencial ponto de não-retorno, após o qual o desmatamento e a degradação levariam a mudanças irreversíveis no bioma, com consequências catastróficas difíceis de prever para os povos da América do Sul e do mundo. Uma floresta devastada deixaria de realizar um "serviço ecossistêmico" crucial, em termos ecológicos: armazenar e absorver CO2, modular as chuvas, sem mencionar todos os benefícios conhecidos e desconhecidos das centenas de espécies de plantas que poderíamos perder. Uma história de desastre, de mudanças climáticas potencialmente catastróficas e fora de controle. Mas também, uma história de otimismo tecnológico: por meio de ciência sólida e dos sistemas experimentais certos, podemos antecipar e nos preparar para a catástrofe iminente.


Os tipos de envolvimento com o futuro em jogo neste projeto são específicos. Ao imitar o CO2 elevado, podemos potencialmente entender como as florestas se comportam sob esse estresse. Isso pressupõe que as emissões nunca serão reduzidas, que precisamos entender os efeitos do aumento de CO2 antes que isso aconteça.


Há uma tristeza melancólica nessa história de fundo: o fracasso em fazer qualquer coisa sobre as emissões; a impossibilidade de mudar nossas formas de vida capitalistas; a inevitabilidade de desastres futuros relacionados ao novo regime climático. Essa melancolia circula em minha mente à medida que me envolvo mais com o experimento e entendo não apenas as premissas teóricas e empíricas que o tornam cientificamente importante, mas o contexto social, político e imaginativo que tornou possível essa imensa infraestrutura experimental na cidade de Manaus.




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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, 2023. 

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