Alberto Matenhauer Urbinatti, Marko Monteiro, Ione Mendes, Gabriela Di Giulio e Phil Macnaghten*
Artigo originalmente publicado em inglês no blog Backchannels da Society for Social Studies of Science (4S), disponível no seguinte endereço: https://www.4sonline.org/the-politics-of-covid-19-vaccines-in-brazil-seeing-through-the-lens-of-sts/
Fig 1: Desembarque do 1º lote de insumos para a produção da vacina CoronaVac em São Paulo, aeroporto de Guarulhos (03/12/2020). Fonte: Estado de SP.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) aprovou recentemente duas vacinas para uso emergencial no Brasil [1]: a CoronaVac, parceria entre o Instituto Butantan e a empresa chinesa Sinovac Biotech, e a da AstraZeneca/Oxford. Embora o país seja referência internacional nos debates sobre vacinação pública em massa [2], com importantes instituições públicas desenvolvendo vacinas e um estruturado Sistema Único de Saúde (SUS), opiniões antivacina estão cada vez mais visíveis [3]. Este tipo de movimento é anterior ao atual surto da COVID-19 [4], mas passou a se mostrar crescente após comentários feitos pelo Presidente Jair Bolsonaro e por algumas autoridades federais acerca de uma suposta desconfiança com o início da vacinação. Neste texto discutiremos o jogo político das vacinas para a COVID-19, a partir de questões relevantes para os estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS).
A corrida para assumir a liderança
No dia 17 de janeiro de 2021, os canais de notícias transmitiram a reunião da ANVISA que deu sinal positivo ao início da vacinação no país [5]. A transmissão retratou uma celebração pública da própria expertise da agência, evidenciando críticas veladas aos movimentos negacionistas e até mesmo ao governo federal. Minutos após a aprovação, a primeira pessoa foi vacinada publicamente com a CoronaVac, em ação apoiada por João Doria, governador de São Paulo e principal rival político de Bolsonaro. Em meio à transmissão ao vivo, o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, por sua vez, fez questão de chamar uma coletiva de imprensa no mesmo momento e, visivelmente incomodado, acusou Doria de realizar uma manobra publicitária. As redes sociais se agitaram com memes sobre a “corrida pela vacina”, retratando a oposição entre o papel do governo federal e do governo de São Paulo no lançamento dos planos de vacinação do Brasil.
Não há dúvidas de que a disputa que se desenvolveu em torno da autorização e lançamento de vacinas tem sua origem na ruptura política entre Doria e Bolsonaro, que haviam fortalecido alianças nas eleições de 2018. Doria acabou recebendo muitos votos daqueles que também apoiavam Bolsonaro à presidência, principalmente depois da inclusão do slogan “BolsoDoria” na campanha. No entanto, esta aliança não durou muito e Doria mudou seu tom político em 2019, afastando-se de Bolsonaro para tornar-se, muito provavelmente, seu principal oponente nas próximas eleições presidenciais em 2022. As principais questões atuais em disputa estiveram relacionadas às medidas de combate à COVID-19, principalmente sobre quem teria autoridade para emitir ordens para as pessoas ficarem em casa, para fechar e reabrir comércios e escolas, entre outros.
Recentemente, Bolsonaro declarou que “nenhum país do mundo está interessado na CoronaVac” e que “não seremos cobaia de ninguém”, o que claramente pressiona ainda mais as relações com João Doria, da mesma forma que contribui para a desconfiança pública nos métodos científicos e nas tecnologias utilizadas pelo Instituto Butantan e pela Sinovac Biotech. No clima destas declarações, teorias da conspiração ganharam terreno nas redes sociais, incluindo a da suposta presença de um nanochip 5G em vacinas como parte de um grande plano idealizado por Bill Gates para controlar os corpos humanos. A circulação de tais conspirações tem colocado em questão a confiança pública na ciência e nos programas de vacinação já consolidados no Brasil, promovendo ainda mais grupos extremistas alinhados com a agenda ideológica de Bolsonaro.
Na contramão de perspectivas que incentivam uma espécie de fé cega no trabalho dos especialistas, os estudos CTS sustentam que é mais do que necessário encorajar a abertura das práticas científicas para a avaliação pública. Ainda mais devido às formas pouco transparentes e inclusivas por meio das quais a ciência ‘tradicional’ tem se desenvolvido no mundo e no Brasil. O que precisa entrar em pauta neste período pandêmico no país é, em primeiro lugar, a interpretação dos motivos para o aumento da desconfiança pública. Em segundo lugar, é importante colocar em questão o impacto de tal desconfiança sobre a solidariedade social e o senso de comunidade imprescindíveis para a garantia da vacinação em massa. Geoffrey Kabat (2018) [6] expõe que: “a controvérsia em torno das vacinas envolve um mal-entendido generalizado da ciência por uma minoria vocal”. Neste sentido, a falta de conhecimento público é uma porta aberta para as minorias maliciosas espalharem argumentos absurdos, especialmente depois da divulgação da eficácia menor do que o esperado – aproximadamente 50% – da CoronaVac. O fato de Bolsonaro dizer que a vacinação não será obrigatória, questionando a eficácia científica das vacinas, contribui justamente para a dissolução de algum senso de comunidade necessário para imunizar o maior número de pessoas.
Visto através das lentes dos estudos CTS, este episódio mostra que os fatores sociais deveriam ser a chave para entender o papel da tecnologia no cenário de corrida para a vacinação. O senso de urgência colocado pela pandemia, bem como as disputas políticas envolvidas no lançamento de vacinas, parece colocar as escolhas tecnológicas em segundo plano. A necessidade de maior transparência nas dimensões sociais e políticas que sustentam a escolha tecnológica do governo de São Paulo pela CoronaVac e do governo federal pela AstraZeneca abre um novo espaço para o debate.
‘Novo’ pacto global: a fragilidade brasileira
Um relatório recente publicado pelo projeto Comparative Covid Response: Crisis, Knowledge, Politics [7] sugere um novo ‘pacto social’ emergindo em nível global em termos éticos e científicos, particularmente em torno da produção e distribuição de vacinas. O que parece importante ressaltar nesta conjuntura é que a reputação internacional do Brasil não tem sido boa nos últimos tempos devido a repetidos erros diplomáticos e a uma questionável agenda populista liderada pelo Presidente Bolsonaro. O governo federal tem apostado em um bom relacionamento com a Índia, especialmente após a derrota de Trump, ao assinar um acordo de compra de vacinas da AstraZeneca/Oxford, ao mesmo tempo em que tem criado tensões constantes com a China. Em contrapartida, o governo de São Paulo tem gerado uma atmosfera de cooperação com os chineses a partir da parceria Butantan-Sinovac.
É aqui que surge outro ponto relevante para os estudos CTS: o jogo político da transferência de tecnologia. Rotular a CoronaVac como uma ‘vacina brasileira’ foi um eficiente movimento de marketing por Doria. Apesar das críticas anteriores, o Presidente Bolsonaro usou deste slogan para dizer que o desenvolvimento da vacina também foi uma conquista do governo federal e que, por isso, ninguém é dono dela. Por um lado, isto é verdade, pois o acordo do Instituto Butantan para produzir e distribuir milhões de doses está baseado em uma escala territorial nacional. Por outro, de acordo com a CNN Brasil [8], um documento assinado pelo Butantan e pela Sinovac Biotech informa que: “O Butantan tem plena compreensão de que a vacina é desenvolvida pela Sinovac e que a Sinovac detém os direitos de propriedade intelectual e interesses da SINOVAC na vacina”. Em outra passagem, o documento menciona que o Butantan deve destruir o ‘Dossiê do Produto’ e suas cópias em caso de ruptura de parceria.
Apesar da guerra de marketing, o Brasil continua muito dependente da entrega de matérias-primas cruciais (incluindo insumos farmacêuticos ativos) para iniciar e ampliar a produção local dos agentes imunizantes. Até o momento, presenciamos episódios de atraso por parte da China e da Índia, gerando constrangimentos diplomáticos. O fato é que o espetáculo político da ‘guerra das vacinas’ expôs ainda mais a fragilidade do Brasil interna e externamente, colocando em risco a continuidade da vacinação em massa em todo o país.
*Os autores são integrantes do projeto “Comparative Covid Response: Crisis, Knowledge, Politics (CompCoRe)”. Alberto Urbinatti e Marko Monteiro são membros da Rede Covid-19 Humanidades (https://www.ufrgs.br/redecovid19humanidades/index.php).
[2] https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_content&view=article&id=14065:brazil-launches-worlds-largest-campaign-with-fractional-dose-yellow-fever-vaccine&Itemid=135&lang=en; See also https://www.nytimes.com/2020/08/15/world/americas/brazil-coronavirus-vaccine.html.
[3] Brown, Amy Louise, Sperandio, Marcelo, Turssi, Cecília P., Leite, Rodrigo M. A., Berton, Victor Ferro, Succi, Regina M., Larson, Heidi, & Napimoga, Marcelo Henrique. (2018). Vaccine confidence and hesitancy in Brazil. Cadernos de Saúde Pública, 34(9), e00011618. Epub September 21. https://dx.doi.org/10.1590/0102-311×00011618;
[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/en/saude/noticia/2018-09/brazil-concerned-over-low-vaccination-rates; See also https://www.washingtonpost.com/world/the_americas/brazil-battles-yellow-fever–and-a-dangerous-anti-vaccination-campaign/2018/02/17/fccb9528-0d1e-11e8-998c-96deb18cca19_story.html.
[6] Kabat, Geoffrey. (2018). Taking distrust in science seriously. Science & Society, 18:1052-1055. https://doi.org/10.15252/embr.201744294.https://www.embopress.org/doi/full/10.15252/embr.201744294
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