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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

O que teriam os mosquitos a nos dizer? Reflexões sobre ecologia (d)e doenças vetoriais

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Por  Túllio Maia*

A manhã que marcara drasticamente a vida do jovem Gregor Samsa, ao ver-se transformado numa criatura [Ungeziefer][1], interpretada por muitos leitores como um inseto, transformava também as possibilidades de se pensar sobre essas criaturas, que, via de regra, pouco despertam nosso interesse e empatia. Pensar, na obra kafkiana, sobre dilemas tão humanos sob a carapaça do que parece ser um artrópode – na minha própria imaginação, um besouro – é permitir-se experimentar, ao menos num plano imaginativo, um descentramento do tal excepcionalismo humano (c.f. Haraway, 2008) ao elaborar certas narrativas.

As narrativas a respeito das doenças vetoriais – aquelas ocasionadas por algum patógeno carregado por um vetor, geralmente artrópode ou molusco – nos interessam. Ora, como não impressionar-se com os grandes números de casos de malária e dengue – dentre tantas outras, como a leishmaniose, e as febres rocio, zika e chikungunya – atingindo tantas pessoas no mundo? Tais casos, a propósito, tão fortemente associados ao óbito de milhões de seres humanos, principalmente na África, na Ásia e na América Latina. Os números cada vez mais crescentes de casos de doenças vetoriais, além da expectativa de ainda mais patógenos em circulação, sobretudo no Brasil[2], têm gerado modernos mitos de horror e nos levado ao pânico.

Dado esse cenário, imagino eu que descobriríamos que essas questões também interessam a outras espécies, caso pudéssemos ou quiséssemos com elas nos comunicar verbalmente. O que teriam os macacos bugio a nos dizer sobre a febre amarela, doença que, recentemente, tem lhes dizimado em grandes proporções, seja pela ação do vírus ou de seres humanos tomando os macacos por vetores e, consequentemente, eliminando-os? Ou os cachorros sobre a leishmaniose? Caso pudéssemos ou quiséssemos ouvi-los, será que teríamos levado tanto tempo para atentarmo-nos que os caninos aparentemente podem ser infectados com o vírus da dengue (Thongyuan & Kittayapong, 2017)? Levo, então, esse exercício imaginativo a um ponto um tanto mais radical: o que os mosquitos teriam a nos dizer sobre os fenômenos das doenças vetoriais?

Antes de tentar imaginar como esse diálogo seria possível, questiono: para quais mosquitos faríamos tais perguntas? Quais os efeitos de chamarmos uma espécie responsável por carregar ao menos quatro vírus, tais quais o da dengue, chikungunya, zika e febre amarela, – Aedes aegypti – de “mosquito da dengue”? Aqueles mosquitos que não entraram em contato com nenhum vírus durante a vida devem carregar com eles o título de “vetores”? A erradicação das doenças – e dos potenciais vetores dos patógenos ocasionando essas doenças – é a melhor estratégia para os problemas por nós vivenciados?

É fato que os estudos sobre mosquitos são recentes no Brasil e ainda são tímidos os dados apontando suas agências para além da vetoração, o que lhes remete a uma imponente “importância médica”. Imagino, assim, o quão enriquecedor seria ouvirmos, desses insetos, histórias sobre o seu papel de filtradores, quando na fase larval (aquática); e de polinizadores, quando na fase adulta (terrestre), por exemplo (Winder & Silva, 1972). Além disso, penso no quão embaraçoso seria ouvirmos que os patógenos carregados pelos mosquitos reduzem sua longevidade e fecundidade (Ribeiro, 2012)? Não seria o caso de pensarmos nesses animais tão hospedeiros desses microrganismos quanto nós?

Este texto em vestes de manifesto não visa a romantizar as relações historicamente conflituosas entre humanos e mosquitos. Alimentar o esforço imaginativo de ouvir aqueles que nos incomodam não é uma aproximação da perspectiva de Singer (1975), e o seu combate ao especismo[3]. Portanto, não proponho problematizar a matança de animais, nem mesmo daqueles considerados pragas, ao menos não pelo viés da ética proposta por Singer. Proponho, em seu lugar, uma reflexão cautelosa a respeito das incertezas relacionadas a uma possível erradicação dos mosquitos. Cautelosa, no sentido de que as consequências, caso vivêssemos num mundo sem mosquitos, são incertas para a humanidade. A esse respeito, a renomada revista Nature, em 2010, argumentou que tal mundo (ou seria distopia?) seria possível, sem que houvesse grande impacto no ambiente (Fang, 2010). Um dos argumentos trazidos é que essas outras agências, que não a vetoração, como a capacidade de polinizar, é desenvolvida mais eficazmente por outros insetos. Num argumento ainda mais incisivo, Inouye (2010) complementa que os mosquitos assemelham-se mais a ladrões de néctar que a polinizadores, propriamente.

Com a sua “importância médica” imperando sobre a sua “importância ecológica”, o pensamento a respeito dos mosquitos tende a ser operado sob o regime da biossegurança em detrimento da biodiversidade. Em outras palavras, o fato de serem base da cadeia trófica de uma diversidade de seres, dentre os quais, peixes de ambientes lênticos – aqueles de água parada –, tem importância menor que a sua competência em transportar patógenos (Mol et al, 2007). Isso, então, parece legitimar a pulverização de inseticidas e de incertezas nas complexas relações envolvendo seres humanos e mosquitos – e também patógenos, políticas públicas, agentes de saúde, pesquisadores e técnicas de pesquisa, dentre tantos outros (f)atores.


O que teriam a nos dizer os mosquitos, caso levássemos a sério a anedótica ideia proposta pelo filósofo e cantor Eliakin Rufino, elaborando o mosquito da malária como defensor da Amazônia? A ideia da malária inibindo a ocupação da floresta não torna desse inseto um aliado, ao menos do ponto de vista biopolítico? Nesse sentido, olho com certa desconfiança para discursos hegemônicos que tendem a apontar os trópicos como zona de periculosidade, sobretudo para aqueles corpos brancos sem contato prévio com patógenos e, portanto, sem defesa imunológica (Sawyer & Agrawal 2000). Tenho, assim, prezado pela leitura e pela elaboração de narrativas que consigam apontar para uma abordagem mais que vetora para esses insetos. Narrativas essas que tentam olhar para ecologia (d)e doenças vetoriais sob o manto do exercício imaginativo, tais quais fizeram Kafka (1997), e Carmen Stephan (2012), esta, ao narrar a sua experiência de ter contraído malária na perspectiva do mosquito [Mückenperspektive].

Não proponho aqui um manifesto, necessariamente, por uma preservação de mosquitos, mas uma chamada para o fato de que parecemos vivenciar o dilúvio antropocênico com a tarefa de selecionar quais espécies trazemos para a nossa arca. Se, no limite, sobrou-nos a tarefa de decidirmos quais espécies devem permanecer, quais devem extinguir-se, que ao menos desenvolvamos as responsabilidades (Haraway, 2008) de como fazê-lo. Dar ouvidos às vozes escondidas nos irritantes zumbidos é o passo no qual aposto.

* Túllio Dias da Silva Maia é biólogo pela Universidade Federal do Sergipe (2013) e atualmente é mestrando no programa de Antropologia Social na Universidade Federal de São Carlos.

Notas: [1] Termo alemão usado para descrever a criatura na qual Gregor Samsa se transforma. Este termo usualmente designa pequenos “bichos” indesejados, de piolhos a camundongos. [2] Disponível em: https://www.pragaseeventos.com.br/saude-publica/chikungunya- e-so- o-comeco- o-que-mais-vem- por-ai/ [3] Algo como o olhar humano demasiadamente focado nas questões tão somente humanas, em detrimentoda atenção a outras espécies.

Referências:

Fang, J. (2010). Ecology: A world without mosquitoes. Nature. 4466(7305), 432-34.

Haraway, D.J. (2008). When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press.

Inouye, D. W. (2010). Mosquitoes: more likely nectar thieves than pollinators. Nature. 467: 27.

Kafka, F. (1997). A Metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras.

Mol, J. H., Mérona, B., Ouboter, P. E., Sahdew, S. (2007). The fish fauna of Brokopondo Reservoir, Suriname, during 40 years of impoundment. Neotropical Ichthyology. 5 (3): 351-68.

Ribeiro, G. S. (2012). Impacto da infecção com o vírus dengue 2 no comportamento alimentar, longevidade e fecundidade de fêmeas de Aedes aegypti. Rio de Janeiro, 91f. Dissertação (Mestrado em Biologia Parasitária). Fundação Oswaldo Cruz.

Sawyer, S., Agrawal, A. (2000). Environmental Orientalisms. Cultural Critique. 45: 71–108.

Stephan, C. (2012). Mal Aria. Roman. Fischer e-books.

Thongyuan, S., Kittayapong, P. (2017). First evidence of dengue infection in domestic dogs living in different ecological settings in Thailand. PLoS ONE. 12 (8): 1-14.

Winder J. A., Silva, P. (1972). Pesquisa sobre a polinização do cacaueiro por insetos na Bahia. Revista Theobroma. Itabuna, 2(3), 36-46.

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