Por Lorena Caminhas
Doutora em ciências sociais pela UNICAMP
Contato: lorenarubiapereira@gmail.com
Atualmente, quem se envereda pelas trilhas dos mercados erótico-sexuais online no Brasil, seja em busca de prazer, seja com finalidade etnográfica, tem se deparado com um número crescente de plataformas digitais que oferecem infraestrutura técnica e interacional para a comercialização de uma série de serviços, realizados presencialmente (como a prostituição) ou remotamente (como o webcamming). Nos últimos quatro anos, período em que tenho me dedicado à pesquisa nesse universo, venho acompanhando uma paulatina transformação desses mercados, que têm cada vez mais adotado as lógicas das plataformas para ofertar e gerenciar uma série de formas de trabalho sexual. Cada vez mais, trabalhadoras e trabalhadores de ramos de sexo e erotismo têm se cadastrado em espaços online plataformizados, montando perfis pessoais através do qual oferecem seus serviços e também fotos e vídeos exclusivos. Acompanhamos, nesse cenário, o aprofundamento do caráter on demand dos mercados eróticos-sexuais e uma transformação nos formatos e nos processos de mediação do trabalho sexual.
Para compreendermos o que está em pauta nesse fenômeno recente, devemos nos atentar para as dinâmicas dos “trabalhos de plataformas” no geral e entender como elas afetam os trabalhos sexuais em particular. Segundo Schmidt (2017), as atividades laborais em plataformas, via de regra, são intermediadas por uma empresa de mídia, que define um conjunto de diretrizes e oferece a infraestrutura (técnica e interacional) para a realização de determinadas atividades. Tanto os trabalhadores (tomados como “empreendedor independente”) quanto os consumidores se cadastram nesses ambientes online e estabelecem ali suas trocas comerciais. Considera-se que ambas as partes da transação adentram em uma economia on demand, em que oferta e procura estabeleceriam as condições de execução dos negócios plataformizados. Devemos notar que essa caracterização genérica aponta para as novas condições e formas de se exercer um ofício, mas esconde os diversos regimes de precarização do mundo do trabalho e o aprofundamento de desigualdades em termos de classe, raça, gênero nessa esfera (Van Doorn, 2017). Ademais, como pontua Van Doorn (2017), as plataformas, para além de trazerem inovações ao universo econômico, canalizam e direcionam uma série de processos já assentados socialmente, lançando mão de um sistema específico de gestão. Se tomarmos aqui o exemplo do trabalho sexual, veremos que as particularidades descritas acima atreladas ao “trabalho de plataforma” sempre marcaram parte dos ramos erótico-sexuais, sobretudo aqueles que envolvem acordo direto entre quem comercializa e quem compra o serviço.
A despeito das continuidades entre os mercados eróticos-sexuais dentro e fora das plataformas, é inegável que estamos diante de um cenário de transformações (algumas das quais comentadas por Van Doorn e Velthuis, 2018). Dentre elas, apresento brevemente duas alterações mais gerais. Primeiro aponto uma reestruturação do processo de compra e venda de sexo e erotismo, que passa a agregar elementos de uma economia on demand (Schmidt, 2017) marcada por ambientes digitais nos quais é preciso efetuar um cadastro com dados pessoais (incluindo comprovação com documentos) e, em alguns casos, informações bancárias (naqueles serviços em que o pagamento é determinado e recolhido pela plataforma, como no webcamming). As transações passam a ser geridas por Termos de Uso e Privacidade, que estabelecem uma série de critérios e condições para esse comércio online. Nesse formato os valores, as formas de pagamento e as moedas aceitas (reais, dólares ou tokens) podem ser estabelecidos pelas plataformas, que passam a impor um o tempo de trabalho equivalente às quantias angariadas. Adicionalmente, essas empresas de mídia têm ampliado a segmentação desses mercados, sobretudo a partir da marca de gênero, separando sua força de trabalho nas categorias “mulheres”, “homens”, “transexuais” ou “travestis”.
Digital Platform – Caminhas, 2020
Esses aspectos da economia erótica-sexual on demand apontam para a ingerência das plataformas sobre o trabalho sexual, condicionando e conformando as transações. Vemos emergir um novo ator social de mediação dos mercados erótico-sexuais, que se apresentam como “empresas de mídia” que gerenciam um ambiente online. Essa nova mediação tem implicações direta para a própria conformação desses mercados, ampliando o modelo híbrido de comércio já percebido desde o surgimento do alt porn (Attwood, 2007). Tal modelo é marcado pelo encontro entre um componente empresarial/industrial, que é o intermediador das trocas, e outro artesanal/individual, que é a força de trabalho que se cadastra nas plataformas para oferecer seus serviços. Ainda que esses componentes sempre tenham estado no universo de comércio erótico-sexual (ver Piscitelli (2016)), com a presença de intermediários como cafetões/cafetinas ou bordéis/hotéis, no caso das plataformas estamos diante de duas novidades: primeiro, o status do mediador é outro, assumindo a face de uma “empresa” que não necessariamente atuaria no ramo de sexo e erotismo, mas sim de “mídia”; segundo, a hibridização entre um polo artesanal e outro industrial é condição e requisito para a existência de mercados erótico-sexuais plataformizados.
Nessas breves linhas apontei apenas para elementos e tendências gerais dos trabalhos sexuais em plataformas, que podem servir de pontos de partida para investigações mais extensivas e aprofundadas sobre como cada ramo do comércio de sexo e erotismo tem se transformado à medida em que ingressa nesses ambientes digitais. Somente a partir dessas reflexões mais abrangentes e empiricamente situadas poderemos entender como as plataformas online têm alterado e transformados os mercados erótico-sexuais nacionais e instituído estratificações e desigualdades que vêm do mundo do trabalho e do universo de compra e venda sexo/erotismo.
Referências
ATTWOOD, F. (2007). No money shot? Commerce, pornography and new sex taste cultures. Sexualities, 10(4), 441-456.
PISCITELLI, A. (2016). Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas: novas questões conceituais. Cadernos Pagu, (47), 1-31.
SCHMIDT, F. (2017). Digital labour markets in the platform economy: mapping the political challenges of crowd work and gig work. FRIEDRICH-EBERT-STIFTUNG PROJECT. Division for economic and social policy, 1-28.
VAN DOORN, N. (2017). Platform labor: on the gendered and racialized exploitation of low-income service work in the “on-demand” economy. Information, Communication and Society, 20(6), 898-914.
___; VELTHUIS, O. (2018). A good hustle: the moral economy of market competition in adult webcam modeling. Journal of Cultural Economy, 11(3), 177-192.
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