Você já pensou no Santa Ifigênia como um lugar que produz tecnologia? A pesquisa da antropóloga portuguesa Liliana Gil (Ohio State, EUA) sugere que há uma ecologia do reparo no bairro central da capital paulista e que um ecossistema de reparo é um local de produção tecnológica. Em reportagem composta por dois episódios, Yama Chiodi investiga outros olhares possíveis ao Santa Ifigênia que vão além das visões classistas que o associam exclusivamente a atividades ilícitas. Veja e escute a primeira parte aqui.
Na segunda parte da reportagem discutimos os limites da formalidade e da informalidade nos comércios populares, as relações entre improviso e produção tecnológica e também as polêmicas em torno do conceito de gambiarra. No segundo episódio contamos também com um professor do CEFET-MG, o sociólogo Dr. Tarcísio Perdigão Araújo Filho.
A reportagem pode ser ouvida nos serviços de streaming e no site do Oxigênio. Caso você prefira ler, o conteúdo em texto na íntegra está publicado a seguir.
ECOLOGIA DO REPARO, parte 2: informalidade, improviso e a polêmica da gambiarra
[ sons urbanos caóticos aumentam progressivamente até silêncio total]
YAMA: No primeiro episódio a gente começou comentando do caos urbano do Santa Ifigênia. Em algum lugar do bairro um forte contraste se apresenta para quem sabe procurar.
[ começa Documentary]
Uma escola de conserto de celulares que atrai pessoas de várias partes do Brasil. As cores são pensadas com critérios rigorosos, os espaços organizados, limpos e arquitetados para serem fluidos e funcionais. Seu contraste com o bairro onde está localizada não passa sem algumas contradições. Se na estética ela quer se diferenciar do bairro, sua proposta de formar técnicos capazes de reparar celulares a aproxima do Santa Ifigênia.
Nossa convidada hoje é novamente a antropóloga portuguesa Liliana Gil, que esteve presente na escola como etnógrafa, mas também como aluna de duas diferentes turmas. Em sua pesquisa, refletiu sobre a escola e o bairro de Santa Ifigênia enquanto aprendeu na prática a reparar celulares. Em seguida a gente conversa sobre o trabalho de campo da professora na escola de consertos de celulares Prime, sobre formalidade e informalidade na formação técnica no Brasil e também sobre as polêmicas em torno do termo gambiarra.
[ termina Documentary]
[tom]
Oh… se você caiu de paraquedas neste episódio, recomendo que você escute a primeira parte antes de continuar, ok? Essa é uma parte dois que realmente é uma parte dois. Risos
[tom]
Eu sou o Yama Chiodi, jornalista do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, e nesse segundo episódio eu converso mais uma vez com a Dra. Liliana Gil, professora da universidade Ohio State, nos Estados Unidos, que fez sua pesquisa de doutorado no Brasil. Contamos em primeira mão, também, que sua pesquisa está em vias de virar livro. Depois da vinheta.
[ vinheta oxigênio]
YAMA: Continuando nossa conversa, agora nos voltando à Prime em si. Como foi que conheceu a escola e porquê decidiu fazer dela seu campo de pesquisa etnográfica?
LILIANA: Então, eu achei que ia fazer pesquisa sobre Santa Ifigênia enquanto bairro e entrevistar todo mundo, mas de fato foi difícil fazer esse tipo de trabalho e em parte pelas questões de gênero. Até que numa conversa com um colega, ele me falou nesta escola, ah mas sabes que existe esta escola, talvez fosse um bom ponto de entrada e foi assim, foi um amigo, enfim. Inclusive a primeira vez que fui lá, fui com ele e conversei com os professores, com os instrutores e inclusive expliquei, eu estou a fazer uma pesquisa sobre Santa Ifigênia, seria interessante para mim saber como funciona a escola. Ah, claro, vem ser aluna!
YAMA: E como aluna? Se sentiu acolhida pelos colegas? Era estranho uma antropóloga entre eles?
LILIANA: Achei muito engraçado, porque durante todo o processo eu fiz o curso de reparo e várias vezes falava no meu doutorado e meio que as pessoas me diziam, sim, sim doutorado, claro, quando você perceber, quando você ver, o dinheiro que pode fazer com reparos, deixa o doutorado, deixa a antropologia de lado e vai abrir a sua lojinha, porque é outra dimensão. Não, os meus colegas achavam que bom, bom era eu abrir um box em Lisboa e trazer os meus colegas para lá e trabalhávamos todos juntos na nossa box. Íamos fazer muito dinheiro assim.
YAMA: Já que estamos falando sobre seus colegas. Qual é o perfil dos alunos da Prime? Dá pra fazer alguma generalização demográfica?
LILIANA: Talvez não dê, eu acho que a generalização é que havia pessoas de todas as idades e de todos, inclusive de muitos estados diferentes, tinha um colega que tinha vindo do Acre, tinha colega do Recife, tinha colega, sabe, era assim um conjunto de pessoas mesmo muito diferente, eu fiz o curso com duas turmas diferentes.
YAMA: Mas migrantes ou pessoas que vieram para estudar na escola?
LILIANA: Brasileiros que vieram estudar na escola, não, que moravam lá e vinham fazer o curso uma semana, duas semanas, o tempo que fosse necessário, um mês, dependendo se faziam em formato intensivo ou não, ficavam em São Paulo e depois regressavam para as suas cidades para desenvolver o seu negócio. Então tinha, mas também tinha, tinha jovenzinhos, tipo, sei lá, havia um colega que tinha que ter uns 18 anos, os pais dele pagaram o curso porque queriam que ele fizesse alguma coisa profissional com reparos. Mas também tinha pessoal mais velho que tinha tido uma profissão a sua vida toda, tinha ficado desempregado e estava um pouco a tentar reinventar-se. Há a história de uma mulher em particular da periferia de um dos bairros, penso que da Zona Leste, já não tenho a certeza, mas de um bairro periférico de São Paulo que tinha uma lojinha de acessórios, de celulares e muita gente vinha à loja dela, perguntava se ela fazia reparos, ela não sabia fazer e ela entendeu que havia ali uma oportunidade de negócio. Então foi fazer o curso, tinha inclusive filhos, cuidava dos filhos na sua loja, era cuidadora e estava na loja trabalhando ao mesmo tempo. Então havia assim pessoas de muitas, claro, em termos de classe, diria, classe trabalhadora, talvez média baixa, majoritariamente brancos, mas não apenas. Mas de vários estados, de várias cidades, de vários bairros, não apenas de São Paulo, mas também de fora.
YAMA: No seu artigo você dá bastante importância pro contraste entre a escola e o Santa Ifigênia. Que contrastes são esses?
LILIANA: A Prime enquanto espaço visto de fora e, devo reforçar que este não é o nome verdadeiro, isto é um pseudônimo que eu utilizo para proteger o anonimato dos envolvidos e utilizo sempre pseudônimos, a menos que me peçam explicitamente para utilizar os nomes. O que às vezes acontece especialmente quando você trabalha com artistas ou ativistas que gostam de ser reconhecidos. Mas a Prime, assim, vista a partir de fora, mais uma vez, os edifícios de Santa Ifigênia não revelam o que está lá dentro, o espaço lá dentro era bastante novo, como eu descrevo, o equipamento, os espaços bonitos até, não é? Assim, organizados, tudo era color-coded, com cores muito particulares e era tudo muito intencional, a escolha das cores, a forma como o espaço estava organizado. E depois vim saber que o criador dessa escola era alguém que tinha trabalhado para o McDonald's, o que eu achei muito curioso, era uma pessoa que trazia algum conhecimento de estandardização, de como tornar as coisas muito eficientes e melhorar o workflow e peço desculpa aos estrangeirismos, mas às vezes não me lembro das palavras.
YAMA: Interessante. Dá um aspecto de formalidade, né? Em meio a um mar de informalidade.
LILIANA: E… sim, parece muito contrastante e eu acho que utilizei a estratégia retórica de enfatizar o contraste no artigo porque facilita ou dá uma imagem, não é? Isso é bom para contar histórias. No entanto, a crítica que se faz a questões de informalidade é que toda informalidade tem as suas formas de formalidade. Então eu não diria que, embora eu esteja falando de Santa Ifigênia como caótica, como isso é o que transparece, não é? A aparência do espaço, mas o espaço tem que ter regras, não é? Tem as suas lógicas e as suas regras. (...) Agora, talvez a Prime esteja a flertar com a estética de outros espaços, que não são talvez espaços de Santa Ifigênia. E é isso que aspiram muitos dos alunos que vão à Prime, que depois sabem que para ter um negócio bem sucedido, o ideal é montar o seu negócio de reparo num bairro de classe alta, onde juntam um shopping caro. E enfim, ali um jogo, claramente, a Prime está tentando preparar os alunos para fazer o máximo de dinheiro possível e dá estratégias para fazer isso. Então há o contraste da estética, o contraste da performance da organização, não é? Santa Ifigênia não precisa de... tem a sua organização, mas não faz a performance da organização da mesma forma que a Prime faz. Eu acho que esses são os contrastes, assim, maiores, mas têm coisas em comum, porque todos esses espaços têm as suas próprias lógicas e regras.
YAMA: Achei curioso isso que você falou. Você falou em performance da organização. No artigo você fala sobre o cuidado que eles têm com uso de EPI, com a limpeza do espaço e até as cores de objetos como luvas de proteção. Você acha que essa organização interna é mais performática que uma questão de segurança? É e não é? Como é? Risos.
LILIANA: É e não é, é e não é. Às vezes dava a sensação que é mais por uma questão de performance, de competência, de organização, de… é e não é. Eu acho que as luvas, o cuidado com a aparência, não é? Tipo as cores da loja, dá toda uma discussão sobre cores que eu acho fascinante, quando se diz que a 9010 é a Apple, que passa alta, e depois há o 30, 20... assim, todos os códigos de cores são pensados de acordo com o público alvo que você tem em mente. (...)
YAMA: Esse cuidado com a organização me faz querer retomar a questão sobre formalidade e informalidade. Perto do Santa Ifigênia, a Prime inspira uma formalidade. Mas os cursos não são algo reconhecido pelo estado, ou formais como o ensino técnico oficial.
LILIANA: (...) Eu fico sempre muito perdida com debates sobre formalidade e informalidade, porque acho que é sempre... tudo é formal e informal até a um certo limite, não é? Acho que na questão particular da Prime, que é interessante e importante notar, é que de fato não é creditada pelo Ministério, não é? O diploma, como estávamos falando agora, o diploma não é um diploma reconhecido pelo Estado brasileiro, pelo... então, mas é um diploma que para as pessoas significa muito, que é um diploma que elas vão colocar na parede e vai estar visível e vai ser uma forma de dar autoridade e dar autoridade à sua profissão. Então, é definitivamente extremamente formal, porque é um programa bem montado, com manuais, com uma estrutura pedagógica, com prática, não é? Tem aulas teóricas, aulas práticas, é extremamente bem montado do ponto de vista pedagógico. Eu achei bastante eficaz da forma como essa informação é passada e o treino é feito. Mas depois funciona completamente à parte do sistema educativo brasileiro, não é? E nesse sentido é absolutamente informal.
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Na pesquisa da professora Gil, apareceu essa discussão sobre formalidade e informalidade que me parece muito importante no caso do Brasil. Em dois sentidos diferentes. Primeiro, a gente pode se perguntar, onde começa e onde termina a formalidade e a informalidade nos comércios populares e de grandes centros urbanos, como é o caso do Santa Ifigênia? Segundo, onde será que está o lugar da formação técnica no Brasil? Um aspecto dela é formal e fomentado pelo estado, no sistema S e nos institutos federais, por exemplo. Mas uma parte relevante da formação técnica no Brasil é feita em lugares como a Prime, que não tem qualquer respaldo oficial - ainda que ensine e entregue diplomas. Essas não são perguntas retóricas. São perguntas que eu fiz para um sociólogo do trabalho, o Dr. Tarcísio Perdigão Araújo Filho, que é professor do CEFET-MG. Primeiro, foi isso que ele me disse sobre os comércios populares:
TARCÍSIO: A formalidade urbana foi primeiro pensada como um fenômeno em si, que era observada exclusivamente nos chamados países de terceiro mundo, na década de 60, 70, então se tornou um campo de estudo em si que fazia contraste com a forma com que os países do centro do capitalismo organizavam suas atividades econômicas. Então esse termo virou meio que um grande guarda-chuva para tudo aquilo que não se enquadrava naquele padrão ocidental, vindo da Europa, do bem-estar social, do fordismo. Com o tempo os estudos foram se tornando mais empíricos e comparativos também entre as diferentes realidades dos países e foi vendo que existiam, na verdade, inúmeras gradações entre o que poderia ser formal e informal. Quando a gente vai para fazer um estudo sobre o comércio popular, a gente vê, obviamente, a gente está contaminado por esse olhar de ver o que é formal, o que é informal, o que é legal, o que é ilegal, mas ao nível dos atores ali aquilo está bastante misturado e os atores eles mobilizam essas diferenças. Por exemplo, quando a gente está olhando para ambulantes, alguns têm, por exemplo, as licenças, as permissões do Estado para poder fazer a sua atividade e ou tros não. E muitas vezes esses signos do que é formal, do que é informal, não têm necessariamente um padrão muito bem determinado. Mas também acho que é importante falar que as práticas informais não estão restritas
aos universos do "empreendedorismo dos pobres". A gente olha para uma empresa que sonega imposto, por exemplo, uma empresa grande, a loja do shopping lá que você comprou o celular novinho, às vezes está com as relações trabalhistas avacalhadas também.
YAMA: Depois, eu perguntei pra ele especificamente sobre as posições técnicas.
TARCÍSIO: Eu tenho a impressão de que os cursos técnicos, esses dos sistemas federais, esses que a gente está chamando do curso técnico formal, eles dizem muito em respeito a uma política de Estado relacionada à industrialização, ao sentido do desenvolvimento que o Estado está ali desenhando, envolve o aprendizado técnico para você, enquanto uma nação organizar os processos produtivos. Q uando a gente olha para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, a gente vê na verdade que a informalidade ocupa um lugar estrutural. Então, nada mais condizente desse tipo de desenvolvimento em que a industrialização no Brasil é fraca, foi historicamente fraca e incapaz de absorver a mão de obra e de não acompanhar a urbanização, enfim, que essa massa de informais também fosse se formar. Então, quer dizer, a busca pelo conhecimento técnico ligado ao celular, que é uma demanda relativamente recente, se a gente pega a história do Brasil, ela acaba tendo maior centralidade, às vezes, do que um conhecimento, por exemplo, os conhecimentos técnicos clássicos da indústria.
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YAMA: Eu tenho a impressão que há no Brasil certo preconceito e desvalorização com as profissões técnicas. Você percebeu isso no seu campo?
LILIANA: (...) Eu acho que isso é geral, na verdade, acho que não é uma especificidade brasileira esse tipo de preconceito em relação às profissões técnicas, que eu pessoalmente não tenho e acho que no meu trabalho aquilo que eu tento fazer é mesmo contrapor isso, não é? E mostrar a importância das profissões e a importância de reconhecer e reconhecer não apenas socialmente mas monetariamente. E se você vai para lugares, eu acho, no Brasil a mão de obra é muito barata e a desigualdade permite que profissões técnicas sejam muito mal pagas, mas você vai para lugares, cada vez mais em Portugal é assim e nos Estados Unidos, essas profissões são muito bem pagas. Quando você precisar de alguém para arranjar a canalização, um canalizador, vai ter que pagar muito, as pessoas são cada vez mais raras, um trabalho bem feito requer muito conhecimento técnico e, enfim, são profissões muitíssimo importantes que vão ficar conosco muito tempo.
YAMA: Entre o formal e o informal… lá estava uma professora universitária fazendo cursos técnicos de reparo como aluna. A pergunta que não quer calar é: você se sente capaz de consertar celulares hoje? Será que vamos ver um box da Liliana em Columbus, Ohio para reparar os celulares dos amigos? Risos.
LILIANA: Eu sinto-me mais ou menos, eu acho que não tive a prática que deveria ter tido e uma das coisas que a escola oferecia era depois de você completar o curso tinha direito a frequentar as bancadas e utilizar o equipamento da escola durante já não sei quantas horas, precisamente para praticar e fazer os primeiros reparos, nesse contexto e com algum apoio dos professores. Mas eu sei, o que eu sei exatamente agora é onde encontrar a informação que necessito. Também não, esta informação, muita dela é pública, não é? Eu comento no artigo que na escola utilizávamos muito o website californiano iFixit, fica aí a recomendação. Então, sei onde encontrar a informação, sei que equipamento eu iria precisar, que não tenho, nomeadamente máquina de soldar e tenho alguma confiança que se precisar de um reparo sei qual é o tipo de trabalho que está envolvido e já ninguém me engana. Risos. Eu sei quanto custa aquele trabalho, mas também sei apreciar o que me envolve, não é? Mas não, neste momento, não faço reparos para amigos, lamento. Risos.
YAMA: Mudando um pouco de assunto agora… No artigo você discute brevemente que a escola promoveria dinâmicas anticapitalistas, certo?
LILIANA: Talvez. (...) Mas tem a ver com esta questão do reparo, não é? Por um lado, é uma escola privada que pretende fazer dinheiro, não é? Não é uma non-profit, não é? Tipo, tem essa missão e é bem sucedida daquilo que eu vi e pareceu muito bem sucedida nisso, mas lá está, está a promover e a permitir reparar coisas que... reparar um iPhone, por exemplo, é uma medida, acho, é um comportamento anticapitalista, não é? Vai contra os interesses da Apple, que faz tudo o que pode para manter os seus equipamentos fechados e impossíveis de reparar ou apenas reparáveis pela marca. Inclusive, pratica técnicas muito agressivas de, como se diz, obsolescência planejada. (...) Então, uma escola com uma Prime, aquilo que faz é contrapor isso, não é? E criar alguma resistência no sistema, o que para mim é fantástico. Agora, se me perguntar, mas este é o modelo de escola que queremos, é o modelo geral para o mundo, para o Brasil? Não, não, porque é uma escola privada, é preciso... os alunos, muitos deles pedem créditos para fazer estes cursos, não parece que seja uma situação ideal, mas se conseguíssemos dar esses cursos de forma pública, acho que seria muito, muito interessante, não é?
YAMA: Sem dúvidas. Pegando carona no que você disse sobre as práticas da Apple… Eu acho que percebi no seu artigo certo paralelo entre os contrastes entre iPhone e Android e o Santa Ifigênia e a escola, certo? Ao menos do ponto de vista da escola. Risos. Será que essa metáfora é produtiva?
LILIANA: Sim, sim, sem dúvida. E acho que há uma tentativa de fazer isso, uma tentativa de criar distinção, não é? Toda aquela conversa sobre o oceano azul e o oceano vermelho e onde tem sharks, onde tem, não sei, sardinhas. Há o peixe pequeno e o peixe grande. Então, sem dúvida que aquilo que a escola dá é essas narrativas e essas possibilidades, mas também explica como abrir, no fundo explica como adequar o seu negócio ao público que você tem. (...) Mas eu acho que há essa tentativa, sim, do ponto de vista da escola. A própria escola joga com essas ideias. O mais bizarro de tudo isto, agora um aparte, é que no meio disto tudo é mais fácil consertar Androids, porque a tecnologia é mais aberta, mas no fundo é mais fácil reparar, na verdade, mais fácil reparar iPhones, porque é tudo tão modular que é literalmente encontrar os módulos, só que é difícil comprar os módulos oficiais, não é? Normalmente são cópias.
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MAYRA: Oi, aqui é a Mayra e eu vim contar para vocês sobre o lançamento da nova temporada do podcast Mundaréu: De Lua em Lua, nova temporada do Mundaréu sobre menstruação e antropologia. Serão sete episódios, lançados um por dia, durante os dias 22 a 28 de maio de 2024; confira o trailer e ouça no site Mundaréu – Podcast de antropologia ou no seu streaming de áudio preferido. De Lua em Lua é feita para e por adolescentes. São 7 ciclos recheados de histórias descontraídas, com diversas vozes diferentes e compartilhamentos sinceros sobre menstruação, adolescência e dignidade menstrual, que nos ajudam a abrir mentes e corações sobre os desafios e belezas de menstruar. Não perca essa conversa essencial e transformadora. Prepare os fones de ouvido e embarque nessa jornada de ciclo em ciclo, de Lua em Lua!
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YAMA: Nesse último bloco deste episódio, a gente retoma um assunto polêmico, que é a conexão entre improviso na produção tecnológica e o conceito de gambiarra. Nós brasileiros estamos super acostumados a usar a palavra gambiarra no nosso dia a dia. Ironicamente… quando eu estava gravando esse episódio eu tropecei no fio e acabei quebrando o adaptador da tomada do meu notebook, que desprendeu o plug da fonte. Prontamente, fui à porta da minha geladeira e usei a superbonder para improvisar um conserto temporário que me permitiu continuar gravando. Um jeito poético de começar uma conversa sobre gambiarra, não é?
Nem sempre esse conceito tem uma conotação negativa, como quando a gente refere a um serviço mal feito, por exemplo. Por vezes a gente usa esse termo para assinalar que um problema foi resolvido de modo criativo, com os recursos que estavam disponíveis. Este segundo sentido acabou caindo nas graças de alguns pesquisadores e pesquisadoras estrangeiros, que viram no termo um conceito que organiza práticas de produção tecnológica fora dos centros do norte global. Mas, no âmbito das ciências sociais, o encantamento dos gringos com a gambiarra nem sempre é bem recebido. Frequentemente cientistas sociais brasileiros de diversas disciplinas alertaram sobre possibilidade de o interesse gringo denotar certa romantização da pobreza e também o problema de querer "descobrir", entre aspas, um conceito que para nós é absolutamente cotidiano. Curiosamente, foi em um desses debates que eu conheci a professora Liliana, num evento na UFSCAR onde ela apresentava seu trabalho e falava sobre seu interesse no improviso na produção tecnológica. Naquele momento já com alguns anos de pesquisa de campo no Brasil, ela encontrou lugares bons para pensar tanto em espaços ativistas, caso dos hackerspaces, como em comércios populares, caso do Santa Ifigênia.
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YAMA: Agora, assunto polêmico. Eu te conheci em 2018, justamente apresentando um trabalho que articulava o conceito de gambiarra com práticas de improviso na tecnologia. Essa ideia continuou importante na sua pesquisa?
LILIANA: Olha, eu, na verdade, esta pergunta é excelente porque foi assim que a pesquisa começou e provavelmente vai ser assim que a pesquisa vai acabar, deixa eu explicar. Lembro dessa viagem que eu falei em 2014, foi nesse momento que eu conheci a expressão gambiarra, até foi no Garoa, no HackerSpace e foi a partir daí que eu fiquei muito interessada e fui lendo mais sobre o termo. Em Portugal não existe a palavra, ou existe a palavra gambiarra, mas não tem o mesmo significado. Gambiarra, até salvo erro, é as luzes do teatro, é umas luzes que se usa no teatro para iluminar o palco, mas não tem essa noção de improviso conectada. E foi por isso mesmo que eu fiquei muito, muito intrigada, que é o fato que a mesma palavra consegue ter vidas tão diferentes, em espaços tão diferentes e acho que isso tem que... claro que tem que ver com a trajetória do Brasil, com aquilo que é realidade no Brasil, o Brasil pós-colonial, o Brasil que foi colonizado por portugueses, foi um dos países que mais escravizou no mundo, provocou situações de extrema desigualdade, sei lá, infraestruturas que são extremamente precárias, condições de vida, etc. Então é nesse contexto que a palavra, uma palavra ligada ao improviso e à tecnologia ganha toda uma vida que não tem, de fato, não tem da mesma forma em Portugal. Mas enfim, então a pesquisa começou com um trabalho à volta disso e eu escrevi toda a tese doutorado procurando a ideia
de improviso em conexão com tecnologia e tentando fazer essas discussões.
YAMA: No evento que eu citei, a professora Catarina Morawska te aconselhou a ter cuidado ao lidar com a ideia de gambiarra enquanto portuguesa.
LILIANA: E na verdade foi muito importante para mim porque eu percebi que algo que me disse foi cuidado, que eu estava utilizando o Buarque de Holanda e uma série de autores assim mais do canon do pensamento brasileiro e ela disse cuidado, com esse tema vai com calma, como portuguesa falando desse tema, vai com calma. E eu achei isso muito importante porque me deixou assim, mas ok, tenho que fazer quase a crítica da crítica, não é? Tenho que pensar na minha posicionalidade em relação a objetos de estudo e como tudo isso se relaciona. (...) E mais recentemente, há toda uma série de autores escrevendo sobre Gambiarra como esta coisa, como uma possibilidade pós-colonial, não é? Tipo, de pensar a produção de tecnologia a partir de outro lugar. E o que eu fiz precisamente na tese, que eu acho que o livro vai acabar sendo, é uma etnografia destas várias formas de pensar sobre gambiarra e tentar, com o máximo de cuidado possível, colocar isso em diálogo com a minha própria posicionalidade enquanto portuguesa.
YAMA: Conversando hoje mais cedo você me disse que está escrevendo um livro baseado na sua tese. O conceito de gambiarra vai continuar sendo importante para essa conversa sobre improviso e tecnologia?
LILIANA: É um termo complicadíssimo, super interessante, que eu não vou resolver. Também não me cabe a mim, acho que as etnografias muitas vezes não resolvem nada, só trazem-as de cima e enfatizam as técnicas, não é? E apresentam-nas. Mas o que eu estou procurando escrever, e já comecei, é um livro que faço uma espécie de mapeamento das várias formas como improviso e tecnologia foram pensadas. Às vezes de forma positiva, outras vezes de forma negativa, alguns dizendo que é, lá está, uma forma pós-colonial de olhar para a produção de tecnologia, outros dizendo que na verdade é uma romantização da pobreza. E também perceber que essas dinâmicas acontecem em outros países, em outros contextos, talvez não sejam tão faladas como no Brasil, e acho que é por isso que o Brasil é tão interessante para pensar esta questão do improviso. Mas o improviso está em todo lado, não é? E está em Portugal, está nos Estados Unidos, está em Singapura, está em todo lado. (...) Eu acho que o meu interesse desde o início na ideia de gambiarra, na ideia de improviso, é sempre numa procura de questionamento das minhas assunções e das minhas assumptions, daquilo que é considerado tecnologia e produção de tecnologia em lugares como Portugal, como nos Estados Unidos, mas também como no Brasil, dentro de certos contextos.
YAMA: Agora, já falando sobre seu livro. Está encaminhado? Já tem uma previsão de lançamento?
LILIANA: Olha, nunca pensei na vida de escrever um livro, mas de fato se você está na academia americana, nas nossas áreas, é algo que é esperado. Então a ideia seria transformar a tese de doutorado no livro. Vou regressar agora em junho, julho, porque de fato o Covid interrompeu uma pesquisa. Eu felizmente consegui fazer muita pesquisa antes do Covid e como disse fui todos os anos desde 2014 e depois passei 2018, 2019, passei 13 meses, sobretudo em São Paulo, mas de fato desde o Covid que não tive a possibilidade de revisitar. Então quero muito voltar, saber como estão as coisas, quero rever amigos sobretudo, sou uma pessoa que faz muita pesquisa de campo através de amizade e de conversar com pessoas e às vezes... Então quero muito reconectar com espaços, com pessoas das quais tenho muitas saudades.
YAMA: Tá certo. Muito obrigado Liliana pela entrevista. Espero que a gente possa conversar de novo quando o livro for lançado.
LILIANA: Muito obrigada, Yama, pela generosa conversa. A quem nos ouviu, muito obrigada por ouvirem. Se tiverem questões, por favor, o meu email é gils.1@osu.edu. Também podem encontrar online, se googlarem Liliana Gil Antropologia, tenho a certeza que vão encontrar os meus contatos. Estou muito disposta a partilhar artigos, para partilhar ideias. É isso, muito obrigada pela oportunidade, muito obrigada, Oxigénio também.
[baixo]
[começa Bio Unit]
Este episódio foi roteirizado e produzido por mim, Yama Chiodi. A revisão foi da coordenadora do Oxigênio, Simone Pallone. Quem fez a divulgação do podcast Mundaréu foi a Mayra Trinca. Se você quiser ler o artigo completo escrito pela Dra. Liliana Gil, em inglês, deixo um link para o pdf na descrição.
O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. Além disso, contamos com o apoio da FAPESP, que financia bolsas como a que me apoia neste projeto de divulgação do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT.
A lista completa de créditos para os sons e músicas utilizados você encontra na descrição do episódio.
Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e na sua plataforma preferida. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio! Aproveite para deixar um comentário.
[Termina Bio Unit]
Aerial foi composta por Bio Unit; Documentary por Coma-Media. Ambas sob licença Creative Commons.
Os sons de rolha e os loops de baixo são da biblioteca de loops do Garage Band.
A reportagem de Celso Russomanno citada está disponível na íntegra no canal dele no Youtube, no link: https://www.youtube.com/watch?v=AOGyS7VRGI4
Para ler o artigo da professora entrevistada na íntegra, basta acessar o link: https://drive.google.com/file/d/100tviO-2c1z7mhzMLYX8ghXrxs2jNXYJ/view?usp=sharing
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