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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

Com quantas conchas se faz boa ciência social?

Atualizado: 31 de ago. de 2023

Por Vitor Chiodi


As mais variadas reflexões sobre o Antropoceno têm sido traçadas e discutidas por cientistas sociais e naturais, artistas, feministas. Dentre esses vários olhares lançados ao conceito de Antropoceno me proponho a fazer um exercício bastante mais singelo. O primeiro passo da formulação desse texto passou pela percepção de como o termo é controverso para as ciências sociais. Quais promessas ele deixa? A ideia de que ele seria mais do que um simples conceito, mas um evento. Um evento que marca uma fluência sem precedentes nos estudos transdisciplinares das ciências do clima e nos trabalhos que virão a lidar com as catástrofes urgentes e irreversíveis a vir. De modo bastante inesperado, encontrei os caranguejos-ermitões. Não sei precisar em que momento tudo passou a fazer sentido, mas esses pequenos crustáceos se tornaram uma inesperada e bem-vinda fonte de repensar o Antropoceno a partir de quais relações queremos criar entre ciências sociais e naturais, ciência e política, natureza e cultura.


Mais justo então, se me proponho a pensar por relações, é indicar que o que me interessou em particular nos caranguejos-ermitões foi a relação que eles criam com moluscos de concha dura. Essa relação é comumente definida como um caso de comensalismo. Mais precisamente, um caso específico de comensalismo, chamado metabiose. Relações comensalistas destacam uma simbiose multi-espécies na qual uma das espécies tira vantagens sem trazer benefícios ou malefícios à outra (o que a distancia das relações parasitárias ou comunitárias). Uma espécie comensal pode conseguir alimento, transporte e várias outras vantagens que a tornem melhor preparada para sobreviver em um dado ecossistema. Quando esta relação é do tipo metabiose, essas vantagens são aprofundadas de tal forma que a espécie comensal se torna, na verdade, dependente de outra para sobreviver em determinado ecossistema.

E assim se relacionam caranguejos-ermitões e moluscos de conchas duras. Caranguejos-ermitões são na verdade uma superfamília, Paguroidea, e designam mais de mil espécies. Esses animais possuem um exoesqueleto muito limitado, que cobre apenas a parte posterior de seus corpos, deixando um abdômen mole profundamente passível de predação. O membros da Paguroidea buscam conchas duras que, a um só tempo, protegem a parte mole de seus corpos e servem de moradia por longos períodos. A procura por conchas para viver marca de modo muito importante a sociabilidade desses animais, em especial em tempos e sítios onde há mais caranguejos do que conchas disponíveis.  A disputa pelo material essencial para a sobrevivência em um ecossistema hostil torna-se um advento da urgência que interpela os comensais. Essa urgência é marcada por uma inevitável oposição entre a moleza do abdômen dos comensais e a dureza das conchas, em um ambiente muito hostil a corpos (e ciências) moles, onde a dureza parece ser o principal critério de sobrevivência.

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Fotos tiradas pelo autor às margens do rio Caraíva em julho de 2017, em conexão local com os protagonistas desse texto.


Ainda que seja um pouco nebuloso a princípio, narrar a relação de simbiose entre caranguejos–ermitões e moluscos torna-se uma boa maneira de pensar nas estratégias de conexão entre ciências naturais e sociais nos tempos de urgência do Antropoceno. As urgências de nosso tempo parecem acelerar as tentativas de conexões e, sob o nome de Antropoceno, cientistas sociais muito conhecidos como Bruno Latour, mas em especial Anna Tsing e seus companheiros de AURA (Aarhus University Research on the Anthropocene), parecem bastante convencidos com suas possibilidades (Latour 2015 e 2017; Tsing et al, 2015; Swanson, 2016; Bubandt et al, 2015). O grupo de pesquisa AURA une professores e pesquisadores de disciplinas diversas em torno de estudos acerca do Antropoceno, que eles definem como transdisciplinares. Todos esses autores reconhecem que a popularidade recente do conceito é em grande medida responsabilidade do ganhador do prêmio Nobel, Paul Crutzen.  Ainda que não tenha sido o primeiro a usar o termo Antropoceno, foram suas credenciais como ganhador do Nobel e a importância do conceito para os estudos da atmosfera que o tornaram famoso que colocaram o termo em evidência na comunidade científica. Crutzen convida outros cientistas a trabalharem juntos para evidenciar os indeléveis impactos do “Homem” no planeta. Um impacto tão profundo que se torna possível falar de uma era geológica dedicada exclusivamente a esse impacto sem retorno, que coloca uma interrogação nas possibilidades de sobrevivência futura numa Terra em ruínas.


É verdade que Latour e os pesquisadores do Aura não estão assumindo o Antropoceno meramente como uma era geológica. Há uma disputa de sentidos mais ampla e complexa envolvida aqui. Donna Haraway (2016), em seu livro mais recente, aponta três usos para o termo: uma era, caso de Crutzen; uma história, que dá suporte uma explicação cosmológica para o fim do mundo por via das mudanças climáticas; e por fim, uma ferramenta ou instrumento. É esse terceiro tipo de Antropoceno que parece unir Latour e o AURA. Desse ponto de vista, mais que uma era ou uma história, o Antropoceno é uma oportunidade ímpar de criar pontes entre as ciências naturais e sociais e entre a política e a ciência. As expectativas parecem ser superlativas. Nils Bubandt (Bubandt, 2015) diz que o Antropoceno pode desestruturar as hierarquias das ciências e que é uma oportunidade para repensar o Anthropos que fundou a antropologia. Latour (2017) diz que os problemas do Anthropos foram resolvidos na antropologia e que eventualmente serão no Antropoceno. Swanson (2016) diz que compartilhar os mesmo objetos forçam cientistas sociais e naturais a se levarem a sério. Anna Tsing (Tsing et al, 2015) diz que as disciplinas são como gêneros e, do mesmo modo que pode haver uma novela de mistério e ficção científica, pode haver um Antropoceno transdisciplinar.


O Antropoceno, tal como uma concha de molusco, é um produto dos lugares duros da produção do conhecimento.  Ao ler os artigos e entrevistas que têm Crutzen como protagonista duas coisas ficam claras. A primeira é que reconhecer o impacto do “Homem” no planeta não necessariamente leva cientistas naturais a buscarem a colaboração de cientistas sociais. A segunda é decorrente da primeira e expõe que quando Crutzen convida as diversas disciplinas científicas para pensarem o Antropoceno em parceria, ele está conversando explicita e exclusivamente com as disciplinas científicas duras, o que pode ser comprovado por passagens de todos os muitos textos de sua autoria e co-autoria usados na pesquisa feita para esse texto. (Stoemer e Crutzen, 2000; Crutzen et al, 2007; Crutzen, 2002 e Crutzen et al, 2010). Ainda que o cientista, claro, não possa ser tomado pelas ciências naturais como todo, parece muito relevante acompanhar o que ele fala sobre a questão. Sem dúvida seus artigos e entrevistas têm grande influência não apenas na comunidade científica, mas também com o público, o que nos sugere que uma queda de braço pelo sentido de Antropoceno parece nesse momento pouco promissora.


As críticas mais recorrentes à ideia de Antropoceno se concentram nos aspectos que podem tornar sua abordagem conservadora: um visão antropocêntrica, moderna e cientificista, que cerca a problemática e anacrônica raiz “Anthropos” de um nundo único compartilhado por todos os seres humanos. Em outras palavras, faz, por exemplo, indígenas e europeus igualmente responsáveis pelos impactos humanos no planeta, suprime visões e mundos de outras ontologias não ocidentais e propagandeia como novidades denúncias que cientistas sociais, feministas e povos ameríndios fazem há muito tempo (Haraway, 2016; Tsing et al, 2015). Quando cientistas sociais ignoram essas críticas necessárias e justas ao conceito de Antropoceno e o abraçam em prol do que Latour chamou de um “positivismo estratégico” (Latour, 2015), eles criam conexões com as ciências naturais nas quais são comensais, caranguejos-ermitões. Em certo momento de uma entrevista, Anna Tsing fala com sinceridade que mal consegue marcar um almoço de modo sério com colegas das ciências duras (Bubandt et al, 2015). Ainda hoje, mesmo a interdisciplinariedade dentro das disciplinas das ciências sociais se mostra de difícil execução. Isso não significa que alianças entre as mais diversas disciplinas, duras e moles, não sejam possíveis ou desejáveis. Muito antes pelo contrário, há diversos trabalhos e pesquisas que já operam a partir dessas conexões. A questão central passa a ser, portanto, porque se submeter ao Antropoceno-concha e nos colocar numa situação de vulnerabilidade tal em que é preciso proteger e esconder a moleza de nossas disciplinas em nome do que Latour (2015) chamou de “positivismo estratégico”?


As urgências e as velocidades dos cortes financeiros e o crescimento do conservadorismo tacanho que atacam as humanidades limitam as possibilidades com as quais podemos contar. Ainda assim, as conexões que estamos criando com o Antropoceno parecem bastante ficcionais. Não é por acaso que o AURA, em artigo coletivo, sugere tratar o Antropoceno como ficção científica ou como ciência emergente (Tsing et al, 2015). Um Antropoceno oriundo das ciências moles é a conexão entre caranguejo e concha, onde os moluscos das ciências naturais talvez nem estejam conscientes da existência dos caranguejos, e já não liguem tanto assim para as conchas que deixaram para trás. Se tivermos de ser caranguejos-ermitões, talvez seja o caso de buscar outras metáforas, outras formas de sobrevivência, onde reforçamos os nossos corpos com outras relações e objetos que não as conchas duras abandonadas por moluscos. Talvez seja o caso de criarmos outras conchas, tal como a artista japonesa Aki Inomata, que imprime conchas artificiais diversas para caranguejos-ermitões reais.


Para evitar o que Latour chamou de “o perigo da naturalização” (Latour, 2015) precisaremos de mais do que o Antropoceno. Conchas explicitamente artificiais podem ser uma metáfora alternativa para retomar o entrelaçamento entre natureza e cultura, há muito popular na antropologia, no contexto de mudanças climáticas.

O Antropoceno como ferramenta reúne, supostamente, as muitas abordagens acadêmicas diante do fato que eles compartilham de um mesmo problema. Cientistas Sociais e Naturais dividem o mesmo ecossistema, o mesmo ecossistema danificado. De certa forma, ouvir ciências duras falando sobre o impacto humano na natureza soa, a princípio, uma grande oportunidade. Mas o que faremos com essa oportunidade? Não há garantias que as ciências duras ficarão mais moles por reconhecer o impacto humano no planeta. Na verdade, parece ser o contrário. O Antropoceno convida as ciências sociais a ficaram mais duras, num contexto que, tal como para o caranguejo-ermitão, a dureza parece ser condição de existência.


Em nome dessa oportunidade única de sermos levados a sério, aqui estamos, jogando com conceitos de Paul Crutzen, emulando sua dureza em um corpo de Antropos que pensávamos haver superado. Batalhas vencidas que recomeçam do zero, como um caranguejo-ermitão cada vez que troca de concha.  Não há dúvidas que o conceito de Antropoceno pode construir novas relações entre ciências naturais e sociais. Novas relações, contudo, não significam relações de mutualismo, como nos mostra a relação entre moluscos e caranguejos.  É possível e necessário fazer ciências transdisciplinares. Isso não deveria significar apenas endurecer as ciências moles. E esse risco envolve o Antropoceno a ponto de o comprometer


*Vitor Chiodi é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da UNICAMP. É também mestre em divulgação científica pelo Labjor – UNICAMP e co-fundador do LABFICC (Laboratório de ficção, ciência e cultura).

Referências

BUBANDT, Nils et al.  “Anthropologists Are Talking – About the Anthropocene”. Ethnos, 81:3, 535-564. 2015. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1080/00141844.2015.1105838 >

CRUTZEN, P. Geology on Mankind. In: NATURE, VOL 415, 2002.

CRUTZEN, P. et al. “The Anthropocene: Are Humans Now Overwhelming the Great Forces of Nature?”, in Ambio, 36(8):614-621, 2007.

CRUTZEN, P. et al. “The new World of Anthropocene”. In: Environ. Sci. Technol. 44, 2010.

HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Making kin in the Cthulhucene. Duke University Press, 2016.

LATOUR, Bruno. Anthropology at the Time of the Anthropocene – a personal view of what is to be studied. In: The Anthropology of Sustainability: Beyond Development and Progress. Palgrave Studies, 2017.

LATOUR, Bruno. Telling Friends from Foes at the Time of the Anthropocene. In: The Anthropocene and the Global Environment Crisis – Rethinking Modernity in a New Epoch, London, Routledge, 2015. Available at: < http://www.bruno-latour.fr/node/535 >.

SWANSON, Heather Anne. Anthropocene as Political Geology: Current Debates over how to Tell Time in: Science as Culture, 25:1, 157-163, 2016.

TSING, Anna et al. Less Than One But More Than Many: Anthropocene as Science Fiction and Scholarship-in-the-Making. Environment and Society: Advances in Research 6, 2015.

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