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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

Corpos, representação, políticas

Atualizado: 3 de ago. de 2023

Professor Marko Monteiro
Livre docente 
Departamento de Política Científica e Tecnológica UNICAMP
carambol@unicamp.br 

Arte e corpo


O corpo como nexo de práticas e imbricado em instituições de saber é um elemento fundante de partes centrais da cosmologia ocidental, sem falar das outras cosmologias que nos compõem enquanto brasileiros. Isso ajuda em parte a explicar a nossa fascinação com o corpo, sua representação e suas materialidades. Além é claro de suas transformações e práticas de construção e reconstrução. Não se trata aqui apenas de pensar o corpo como tema (da arte, da ciência), mas também como nódulo denso em circuitos intensos de relações, de práticas, de instituições e de materialidades que são múltiplas e fortemente disputadas. E nessas disputas, o corpo muito comumente ocupa lugar central, sendo assim objeto de recorrente fascinação.


Assim, quero pensar aqui o corpo também como lócus e campo de disputas: disputas em torno do que pode ser representado, e daquilo que pode (ou não) existir. Em tempos como os atuais, onde essas lutas ganham contornos mais sombrios e definitivamente bizarros, colocando novamente em xeque nossa recorrente ilusão de um tempo que progride inevitavelmente ao “progresso”, é salutar que essa exposição promova mais um encontro com corpos múltiplos e nos convide a debater essas materialidades, essas disputas e as instituições e relações de poder que essas práticas ajudam a construir, reforçar ou subverter.


Pensar o corpo é, portanto, uma das formas mais interessantes pelas quais podemos acessar questões maiores a respeito da política e da representação. O corpo como lócus de intervenção é há séculos um eixo importante de formações políticas, movimentos e ideologias. Disputar o corpo é, assim, disputar também as políticas do possível e do desejável em determinado contexto social e histórico. Como nos legaram muitos pensadores, a produção do desejável é inextricavelmente também a produção dos indesejáveis, e o papel da arte em produzir reflexão sobre corpos é sempre uma fonte de inspiração, crítica e subversão da maior relevância política.

Fig. 1: Visitantes observam arte moderna na exposição “Arte Degenerada”, realizada em Munique, 1937. (fonte: https://www.nytimes.com/video/arts/design/100000002764882/degenerate-art-exhibit-of-1937.html)

Não por acaso, a arte é também lócus de disputa política desde sempre. Um exemplo já paradigmático, fundante da política contemporânea, é a infame mostra “Arte Degenerada” de julho de 1937[i], que marcou o auge da luta do regime nazista alemão contra a arte moderna. Essa mostra ilustra como movimentos autoritários buscam higienizar a arte ou definir o que é desejável a partir do controle de manifestações artísticas, sendo o corpo muito recorrentemente fonte de escândalos dos mais diversos tipos: a arte que mostra corpos degenerados e doentios seria assim ela própria degenerada; corpos visualmente distorcidos seriam propaganda velada e um ataque ao “normal”; corpos tidos como “doentios” seriam, de acordo com esse tipo de mentalidade, a expressão artística de uma degeneração moral e política a ser combatida.



Ciência e representação


A ciência moderna também deve muito às práticas de conhecimento sobre o corpo. As tecnologias sócio-materiais de produção de verdades empíricas emergem, dentre outras formas, associadas também à observação, dissecação e representação do corpo humano. Um lugar onde tais acontecimentos tiveram início é a Universidade de Pádua, na Itália, lócus de desenvolvimento de tantas das nossas maneiras científicas e artísticas de perceber, catalogar, mensurar e escrutinizar o corpo humano.

Fig. 2: Teatro anatômico de Pádua, primeira estrutura permanente desse tipo a ser construída na Europa. A foto, tirada do ponto de vista do cadáver, mostra as estruturas nas quais estariam os alunos a observar o professor enquanto este performava a dissecação e a explanação. Esse ponto de vista problematiza no visitante a dualidade sujeito/objeto, tão cara à ciência, nos forçando a estar no lócus do objeto, do corpo observado e dissecado. (Fonte: foto do autor)

Cabe relembrar aqui o lema da universidade e as relações que ele ecoa:


Universa Universis Patavina Libertas[ii]


A universidade, como recontam as narrativas heroicas sobre seu surgimento, é fundada em 1222, a partir da fuga de alunos e professores de Bolonha, que buscavam maior liberdade acadêmica e autonomia. Reconhecida como a segunda universidade a ser criada no mundo, Pádua abrigou um número impressionante de notáveis da história da medicina e da anatomia, dentre eles Andreas Vesalius, tido como fundador da anatomia moderna. Vesalius é celebrado como tal por ter estabelecido as bases daquelas formas de produção de conhecimento sobre o corpo que ainda hoje ajudam a nortear o que entendemos como produção de verdade: a observação do corpo empírico deve ser a base da produção do conhecimento verdadeiro, em diálogo com a teoria. As dissecações de cadáveres tomam, ali, uma importância cada vez maior no ensino da medicina, e a busca de observar, dissecar e representar de maneira fidedigna o corpo biológico na sua materialidade toma lugar central nas práticas de produção da ciência moderna.


É difícil portanto subestimar a importância que Pádua teve na construção desse grande arcabouço de práticas, saberes e relações que hoje chamamos de ciência moderna; mas são por vezes esquecidos os nexos e relações que tornaram esse edifício possível; ou mesmo, do constante trabalho de reiteração e manutenção desse grande conjunto, que é assim tão provisório quanto qualquer outra instituição ou prática humana. A história de Pádua nos lembra que a universidade, e a ciência moderna enquanto tal, emerge de disputas e da busca de liberdade e autonomia, estando assim imersa em conflitos e disputas políticas desde o século 13. Ataques recentes à universidade são, portanto, mais um momento desse processo longo de disputas, que nos lembram o quanto é importante relembrar essa arqueologia.


Corpos e políticas


O Brasil do século 21 é, especialmente desde os movimentos de junho 2013, campo de batalha político, social e cultural. Conectado a um movimento global de descrença com a ciência e com a democracia, o Brasil representa hoje talvez um dos exemplos mais radicais desse deslocamento das formas de vida antes aparentemente sólidas. E a arte foi, como em vários lugares, frente precoce de disputa. Exemplos disso são a obsessão insistente de alguns grupos conservadores com a suposta sexualização operada pela arte; ou com a representação e visibilidade das sexualidades dissonantes enquanto fonte de todo o mal social e moral; sem falar nas nefastas intervenções do sistema judiciário em mostras de arte, que passam a ser chamados para mediar o gosto artístico[iii]. Vivemos aqui e agora lutas cada vez mais explícitas e a arte, como campo de batalha, participa de forma importante desses movimentos.

Fig. 3: Pintura da série “Criança Viada”, de Bia Leite, parte da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”. (fonte: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/nao-ha-pedofilia-diz-promotor-apos-visitar-exposicao-de-diversidade-sexual-cancelada-em-porto-alegre.ghtml).

Um ponto de inflexão no debate público brasileiro sobre esse tema foi a performance “La Bête”, do artista Wagner Schwartz. A performance, ocorrida na estreia do 35º Panorama de Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de SP (2017), gerou intensa controvérsia e colocou em evidência a questão da suposta sexualização da infância como projeto “degenerado” da “esquerda cultural”. Outro momento marcante dessa disputa foi a mostra “Queermuseu”, que chegou a ser cancelada após protestos de grupos contrários à sua realização.


A visita de oficiais de justiça a uma mostra de arte para averiguação de possíveis crimes marca, a meu ver, um rompimento com a noção de liberdade artística e abriu a porta para a transformação do gosto artístico como questão de polícia e de justiça, um precedente que certamente colocou em outro patamar as disputas em torno do corpo e sua representação, mas também pôs em risco noções arraigadas de liberdade de expressão e de pensamento que ajudam a explicar nossos dilemas políticos atuais.

Por isso, é cada vez mais importante celebrar e vivenciar espaços como este, onde a arte continua problematizando e subvertendo formas de pensar, visualizar e interagir com corpos. A visibilidade é sempre política, e parte de instituições e relações sociais onde o poder é constitutivo. Disputar as visibilidades possíveis do corpo é, assim, continuamente problematizar os limites impostos por movimentos “higienizadores”, limitantes, autoritários.


Publicado originalmente em VILLA, Danilo. Arte Londrina 7. Londrina: UEL, 2019, pp. 30-35. Direitos do autor.

 

[ii] A liberdade de Pádua é universal para todos.

[iii] Um exemplo foi a obra “Ropre”, de Alessandra Cunha, retirada pela polícia de um museu em Campo Grande em setembro de 2017 por supostamente incitar a pedofilia (fonte: https://veja.abril.com.br/entretenimento/obra-que-denuncia-pedofilia-e-tirada-de-museu-acusada-de-incita-la/).

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