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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

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De que o Governo Bolsonaro tem medo?

Atualizado: 18 de jul. de 2023

Joana Cabral de Oliveira 
Professora no Departamento de Antropologia, Unicamp
Marisol Marini
Pós doutoranda no Departamento de Política Científica e Tecnológica
Unicamp. Membra do GEICT.  

Nota Introdutória: O breve ensaio crítico que se segue foi escrito por Marisol Marini e Joana Cabral de Oliveira no final de 2019, a pedido dos editores do dossiê da Cultural Anthropology. Desde então o cenário político tornou-se acentuadamente crítico e complexo, permeado de declarações ofensivas, discriminatórias, que acompanharam ações catastróficas, que retiram ou colocam em risco conquistas recentes, como a política de inclusão de negros, indígenas e pessoas com deficiência em programas de pós-graduação, aprovada em 2012. Apesar das evidências de sua eficácia e legitimidade, ainda que enfrentando os desafios de sua implementação, agora tal ação afirmativa é colocada em risco com a revogação da portaria que obrigava as instituições federais de ensino à instituição de um plano de inclusão de ações afirmativas. O último ato de Abraham Weintraub antes de deixar o ministério, tão trágico e violento quanto as ações de desmonte das instituições associadas ao governo de Bolsonaro, mais do que efeitos concretos, apresenta-se como uma afronta. Seu ato não deixa dúvidas quanto ao seu envolvimento nos retrocessos que vivemos na luta contra a desigualdade e o racismo. A despeito dos esforços de desmonte do atual governo, no entanto, as universidades resistem  e colocam-se como um espaço de combate ao racismo e mitigação da desigualdade escandalosa do Brasil. 

Publicado sob licença da revista Cultural Anthropology: https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/





“E, como disse Cotton Mather, o famoso caçador das bruxas de Salem, Massachusetts, ‘o que não é útil é maligno'”


Vivemos no Brasil tempos sombrios, onde figura uma política de desmonte das instituições científicas. Abordaremos aqui o ataque que setores do governo têm feito às ciências humanas e à antropologia em especial, perguntando quais são as ameaças que esses campos de saber apresentam.


Ao assumir o ministério da Educação, Abraham Weintraub, declarou que daria prioridade às “áreas que gerem um retorno imediato ao contribuinte” e remendou: “não sou contra estudar filosofia […] Mas imagina uma família de agricultores que o filho entrou na faculdade e, quatro anos depois, volta com título de antropólogo? Acho que ele traria mais bem-estar para ele e para a comunidade se fosse veterinário, dentista…”. 


A potência transformativa das Ciências Humanas pode ser atribuída a sua tradição crítica, mas, no caso brasileiro, podemos acrescentar mais um aspecto. Segundo números do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais, os cursos de sociologia e filosofia têm 1 afro-descendente para cada 3 e 4 brancos, enquanto medicina e veterinária têm a proporção de 1 para 16. A luta dos movimentos negros por espaço parece ter sido mais bem sucedida nas humanidades, que passa a reconhecer a importância de outras perspectivas para pensar problemas atuais. A antropologia, tradicionalmente interessada em diferentes formas sociais, tem se transformado radicalmente com a contribuição de indígenas e afro-descendentes que tomam seus lugares e se fazem ouvir na elaboração de uma nova reflexão crítica.


Há pressupostos na fala do ministro que precisam ser desmontados. Em primeiro lugar uma concepção de utilidade filiada a um determinado projeto de desenvolvimento, que têm o consumo como norte. Em segundo, uma determinação a respeito de quem teria liberdade para escolher o que estudar, e aqueles a quem só resta responder às imposições de uma suposta necessidade pragmática. Em terceiro, um desconhecimento a respeito das contribuições desses saberes para a organização da sociedade, formulação de políticas públicas, combate à desigualdade, a sustentação da democracia, dentre outras utilidades, inclusive as que se alinham a nova revolução industrial em curso.


Reconhecendo e propondo alianças para além da divisão entre ciências duras e moles, diversos analistas e profissionais engajados na 4° revolução industrial têm destacado a importância da Antropologia, Filosofia e Psicologia. Tratam-se de saberes estratégicos para o aprimoramento dos algoritmos e para a crescente automação. A nova revolução industrial anuncia a substituição de profissionais do direito, da medicina e de campos passíveis de serem realizados por algoritmos, nos colocando diante de dilemas éticos, de modo que saberes pensantes e capazes de intervir nas decisões e planejamento do futuro serão fundamentais. Será uma demanda cada vez mais urgente o mapeamento do que queremos enquanto sociedade/humanidade, o que toleraremos e até onde iremos com as máquinas. 

Direitos reservados à autora [Marini, M.]

Mas o ataque especificamente à antropologia por um viés econômico parece não ser despropositado, já que é nessa ciência que se consolida uma crítica aos reducionismos operados pelo entendimento econômico dos fenômenos. Para ficar com os clássicos, temos o trabalho de Marcel Mauss sobre uma economia da dádiva, as elaborações de Mary Douglas que apontam para a função comunicativa dos bens, que são compreendidos para além do caráter utilitário e comercial. Aos clássicos se somam uma lista crescente de pensadores e pesquisadores que têm adensado a crítica ao utilitarismo, nos alertando para onde o desenvolvimentismo está nos levando. Entre eles ressaltamos o pensador indígena Aílton Krenak, cuja produção torna inevitável a problematização do entendimento e das práticas que tomam a floresta e seus entes como recursos (ou empecilhos). De outra perspectiva, a antropóloga Anna Tsing coloca em suspensão o movimento do capital, que nos enreda em ideias de progresso e na disseminação de técnicas de alienação que objetificam humanos e outros seres. O interesse em narrativas alternativas decorre no esforço de desantropocentrizar o pensamento, mas não de todo antropo e sim daquele sujeito marcado que advogou para si o lugar de humanidade genérica, o homem branco europeu. A tarefa almejada por pesquisas engajadas em destacar a multiplicidade ontológica é nos tornar sensíveis à materialidade, às práticas, aos animais, plantas e todos os outros seres não-humanos silenciados.


Se por um lado podemos argumentar a favor da utilidade das ciências humanas e da antropologia, gostaríamos aqui de reconhecer sua não-utilidade, como uma forma de resistência radical ao projeto utilitarista alinhado aos valores capitalistas.

Trabalhos recentes confrontam, imaginam e revelam outras possibilidades aos humanos e ao mundo face à ascensão e crise do capitalismo, tensionando a sustentação do que John Law denominou como uma metafísica de “one-world world”, catastrófica para bons encontros pós-coloniais.


Apostar numa ciência desacelerada, como sugere Isabelle Stengers, pode nos colocar contra tal ideia de progresso e de desenvolvimentismo sobre a qual proferimos nossa intenção declarada de inutilidade. É preciso nos deixar tocar por outras perspectivas, como a do pensador indígena Davi Kopenawa que resume aterradoramente a existência do mundo Ocidental: “[Os brancos] estão sempre impacientes e temerosos de não chegar a tempo a seus empregos ou de serem despedidos. […] Vivem sem alegria e envelhecem depressa sempre atarefados, com pensamento vazio e sempre desejando adquirir novas mercadorias”.

Direitos reservados à autora [Marini, M.]

Há em curso um ataque à antropologia por medo de sua potencialidade de permitir a emergência de outros mundos possíveis, por reconhecer outras utilidades que não aquelas comprometidas com o mercado, com multinacionais e determinadas famílias. Levantemos, então, a bandeira da inutilidade. Como resposta ao ministro Weintraub a respeito do que fazer com um título de antropólogo, uma sugestão: colocar em questão o papel das ciências (porque afinal a ameaça que vivemos se reflete na antropologia, mas não só), buscando garantir seu lugar e sua legitimidade num país como o Brasil, num mundo neoliberal que caminha para o obscurantismo, em um momento de anticientificismo.

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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, 2023. 

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