Este texto é a continuação do artigo "O que os marcadores sociais da diferença têm a nos dizer sobre os processos de governança da internet?"
Há várias minorias de gênero e sexuais nas plataformas digitais contemporâneas, sobretudo se direcionarmos o foco para as mídias sociais. Neste texto, pretendo me focar em uma minoria que ainda está invisível no debate sobre a regulação do digital, mas que talvez seja aquela que sofra mais diretamente as consequências dos processos de governança contemporâneos. São as trabalhadoras e os trabalhadores sexuais.
Imagino não ser novidade para ninguém que o sexo e a pornografia são importantes motores da internet. Com a chegada das plataformas digitais, essa máxima continua válida. Nos últimos anos, isso tem ficado ainda mais claro com o boom do OnlyFans e outras plataformas de patrocínio que têm sido tomadas pela venda de conteúdo pornográfico, a expansão de plataformas para lives eróticas e venda de pacotes de conteúdo, o uso das mídias sociais para divulgação de serviços e produtos sexuais e eróticos. Em suma, a internet contemporânea é perpassada pelo sexo e erotismo (comercial ou não) e povoada por trabalhadoras e trabalhadores sexuais que utilizam esses espaços para se promoverem e se expressarem. Mas a verdade é que essa população tem sofrido com processos de discriminação engendrados social e tecnologicamente, denominados como “automating whorephobia”. E isso vale para os processos de regulação, que passam ao largo do direito dessas/es trabalhadoras/es ou promovem efeitos colaterais deletérios à sua permanência no digital.
O centro, as franjas e o espaço do trabalho sexual
Em texto anterior para este blog, comentei brevemente que o ecossistema do digital é estratificado e que sua geografia é formada por centros e franjas. Essa divisão em centros e franjas pode ser interpretada de várias maneiras, mas aqui ela demonstra a divisão entre plataformas massivamente utilizadas e centrais para o funcionamento do online e plataformas menores, mais recentes, em busca de usuários/as para sua sustentação. Tal segmentação é de suma importância porque as plataformas das franjas costumam implementar termos de uso e políticas de privacidade mais flexíveis para poderem atrair pessoas e grupos, sobretudo aqueles que têm dificuldade de acesso e permanência às plataformas do centro. É de suma importância salientar que essas diretrizes são partes primordiais do processo de governança privada engendrada pelas plataformas. Trabalhadoras e trabalhadores sexuais têm sido constantemente empurrado para essas franjas. E quando elas/es acessam os centros, são empurrados para guetos por processos técnicos de exclusão. Apenas à título de ilustração: você já se deparou com algum/a trabalhador/a sexual em seu Instagram? E no seu Twitter? Mas você já encontrou um/a criador/a de conteúdo de moda ou de comédia no seu feed? Agora aos fatos: o Twitter é ainda hoje a principal mídia social para trabalho sexual no mundo, enquanto o Instagram (e também o TikTok!) tem se tornado central para trabalhadores/as sexuais. Por fim, é importante dizer que no Reddit e no Telegram, mais às franjas, qualquer um de nós encontraremos facilmente alguém exercendo trabalho sexual.
Exclusão, desplataformização e o impacto do SESTA/FOSTA
Se a geografia do digital e os processos de governança implementados nos centros e nas franjas já promovem a expulsão do trabalho sexual, as tentativas de regulação das plataformas também têm o potencial de impactar negativamente na população de trabalhadores/as sexuais.
Em 2018, um conjunto de leis denominado SESTA/FOSTA (Lei Contra a Facilitação de Traficantes Sexuais e Lei de Combate do Tráfico Sexual Online) foi aprovada no Congresso dos Estados Unidos com o princípio de combater o tráfico e a exploração sexual nas plataformas digitais. Esse arcabouço pretende alterar a seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações de 1996 dos EUA de modo a tornar os provedores de internet responsáveis por conteúdo de natureza sexual e pornográfica que circulem em suas infraestruturas. No entanto, essas leis que visavam à responsabilização tiveram impactos diretos nas pessoas que exercem trabalho sexual, promovendo uma caça às bruxas a esses/as trabalhadores/as e a outras minorias sexuais e de gênero. No fim das contas, a ideia era promover uma limpeza dos espaços digitais de “populações indesejadas”. Esse processo lembra bastante propostas higienistas para retirarem a prostituição dos centros das cidades e confinarem as/os trabalhadoras/es em periferias. E é notório o fato de que uma proposta que visava atribuir responsabilidade às plataformas pelo conteúdo circulado se concentrou especificamente em promover um expurgo no digital e marginalizar uma população que tem historicamente seus direitos negados.
Olhar para o contexto de exclusão do trabalho sexual no digital e nos processos de governança não significa apenas atestar a condição de injustiça enfrentada por trabalhadores/as sexuais. As consequências sofridas por essa população são sentidas também por outras minorias sexuais e de gênero em todo o digital. O SESTA/FOSTA criou prejuízos para pessoas do universo LGBTQIAP+ e está diretamente relacionada aos casos dos artistas queer que tiveram contas derrubadas ou conteúdo censurado. Devido à amplitude do entendimento de pornografia e conteúdo sexual desse conjunto legal, mesmo manifestações artísticas ou expressões de identidades estão sujeitas a serem interpretadas como violações.
O exemplo do SESTA/FOSTA também revela quão complicado é o campo da regulação. Ainda que o Estado defina diretrizes legais para a atuação das plataformas, uma parte dos processos de decisão continuam na mão dessas empresas. E a depender das pressões a quepressões que elas se vejam submetidas, corre-se o risco de que elas ampliemampliam a ofensiva sobre minorias que utilizam o digital para se expressarem. Por isso, mecanismos que promovam a transparência nas decisões das plataformas (que já estão vislumbrados na PL 2630) são de primeira importância.
Governar os processos de exclusão
Trabalhadores/as sexuais estão sujeitos/as a formas de exclusão que paulatinamente se tornam realidade para várias outras minorias sociais. É de suma importância reconhecer e nomear essas formas de segregação no digital a fim de promover uma regulação que tenha em mente os mecanismos excludentes engendrados nas tecnologias digitais contemporâneas. Os principais processos são: a restrição, a redução e a desplataformização. Os três são correlacionados e evidenciam um processo de expulsão gradual e quase silenciosa de pessoas e grupos inteiros das plataformas. O primeiro diz respeito à restrição de conteúdo ou do alcance do conteúdo, exemplificado pelo shadowban. O segundo ocorre quando certos conteúdos ou contas inteiras são sinalizados como ofensivos e reportados como violações às diretrizes da comunidade (um aviso antes da expulsão por completo). O último, a desplataformização, se relaciona ao ato de derrubar e banir contas, sem a possibilidade de retomada das mesmas. Trabalhadores/as sexuais estão sujeitos/as a esses três mecanismos diariamente em seu uso das plataformas digitais, sobretudo das mídias sociais. Mas não só ele/as.
Reconhecer essas engrenagens de estratificação e a quem elas são direcionadas ajuda a questionar o discurso das plataformas de que elas não são capazes de controlar conteúdos extremistas, antidemocráticos e criminosos em suas infraestruturas. A administração sobre a presença de trabalhadores/as sexuais e de minorias sexuais e de gênero parece estar na ordem do dia, mas o mesmo não é válido para o preconceito e o ódio no digital. Iniciativas de regulação que proponham uma outra governança se deparam com a difícil tarefa de balancear e examinar os vários processos de exclusão, legislando sobre eles e definindo quais exclusões contribuem a um espaço mais democrático. Dito de outro modo, desde uma perspectiva positiva, é necessário regular para promover um espaço em que a diversidade e a diferença possam existir, florescer e prosperar. Ainda que essa não seja uma tarefa fácil e simples, ela é necessária e urgente. E ela só pode ser realizada em diálogo contínuo e atento com as minorias afetadas. Há muito a se aprender com a experiência de trabalhadores/as sexuais e outros grupos marcados por gênero e sexualidade. Estamos certos de que a regulação e responsabilização das plataformas é imprescindível, e que a promoção de uma governança inclusiva é o caminho para um digital mais democrático.
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