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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia

Foto do escritorLorena Caminhas

O que os marcadores sociais da diferença dizem sobre os processos de governança da internet? Parte 1

Atualizado: 1 de ago. de 2023








Quem acompanha o debate público recente certamente já se deparou com a ampla e acirrada discussão sobre regulação das plataformas digitais. Esse tema tem sido central nos últimos anos no Brasil e no mundo e diversas propostas legislativas estão sendo elaboradas para estabelecer as responsabilidades e os parâmetros legais para a atuação das plataformas digitais em diferentes países. Destaca-se o Digital Services Act elaborado na União Europeia que tem sido uma referência nesta direção. No Brasil, o Marco Civil da Internet (Lei 12965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13709/2018) estipulam diretrizes e limites para provedores online. Ademais, está em pauta o Projeto de Lei 2630/2020, mais conhecido como PL das Fake News – que define a responsabilização das plataformas muito além de conteúdo desinformativo. Mas para além das propostas legislativas (que são fundamentais), a discussão sobre regulação da internet extravasa para o campo social e para a sociedade civil, colocando em questionamento o futuro digital que vislumbramos enquanto sociedade. E é nesse processo de borrar fronteiras e tensionar os limites para nos colocar diante do digital que queremos é que a noção de marcadores sociais da diferença se destaca, nos ajudando a formular uma postura ética para enfrentar os desafios da regulação. Então, para percebermos como essa noção é fundamental de modo teórico e prático, retomemos os principais pontos em disputa.



Plataformas digitais, governança privada e estratificação do digital


As plataformas digitais são, basicamente, as infraestruturas que coordenam o funcionamento da internet desde pelo menos os anos 2010. Para se aprofundar, recomendo ler o artigo seminal de Tarleton Gillespie. Tais infraestruturas são projetadas e colocadas em funcionamento por empresas privadas, que se autointitulam “empresas de tecnologia”. A compreensão do senso comum é de que elas são empresas de tecnologia e mídia. E essa distinção faz diferença, porque uma vez que elas são empresas de mídia, elas são responsáveis pelo conteúdo que veiculam; como empresas de tecnologia, não. Esse sistema empresarial privado tem sido responsável por coordenar a internet e por estabelecer as diretrizes e os parâmetros de uso, assumindo a função de gatekeepers do digital. A partir daqui já percebemos o tamanho do problema que estamos enfrentando quando começamos a lidar com a regulação das plataformas. Basicamente, a tentativa é reverter uma governança pelas plataformas ou uma governança privada, tornando-a uma governança das plataformas ou uma governança Estatal e civil.

A verdade é que com todo poder coordenador e moderador das plataformas, o digital que outrora era imaginado como uma inteligência coletiva ou uma grande comunidade virtual inclusiva passou a ser um espaço mais proprietário e mais excludente, reprisando e muito os processos de estratificação que nos deparamos todos os dias nas nossas sociedades. Você provavelmente já deve ter ouvido falar de exclusão digital, viés algorítmico, discriminação algorítmica, discriminação tecnológica, entre muitos outros termos. Talvez você também já tenha se deparado com a expressão “shadowban” e ouvido sobre redução de alcance de conteúdo em mídias sociais. Tudo isso é parte do mesmo problema: os processos de estratificação social e tecnológica que ocorrem no digital. E eu vou adicionar mais um fator a essa complexa equação. O digital e suas plataformas se distribuem em um ecossistema em que centros e franjas interagem de modo descentralizado, mas muitas vezes hierárquicos. Com isso basicamente quero dizer que há plataformas mais infraestruturais, proeminentes e mais importantes do que outras, que vão ser capazes de agregar mais pessoas (ou usuários/as). E, certamente, quanto mais central, maior é o seu impacto sobre toda a internet – inclusive para o estabelecimento das diretrizes da governança privada.

Em resumo: você se lembra de quando o Facebook derrubou fotos de mães amamentando em 2014 porque os mamilos estavam à mostra? Ou mesmo quando artistas queer que representam o corpo e a sexualidade em suas obras tiveram contas removidas ou conteúdos derrubados no Instagram em 2021? Há vários outros exemplos, como o caso da criadora Polly Oliveira, mulher negra que se posiciona como feminista nas mídias sociais e cria conteúdo sobre o corpo feminino cisgênero, que teve seu alcance reduzido no Instagram e bolou um experimento para mostrar a discriminação dessa rede. Esses acontecimentos estão estreitamente conectados à governança privada das plataformas e como elas enquanto empresas privadas interpretam aquilo que pode ser veiculado em seus espaços. Nesse ponto, já deve estar claro os processos discriminatórios envolvidos na governança pelas plataformas e o lugar que os marcadores sociais têm em localizar essas práticas.


Marcadores sociais da diferença e diversidade no online


Nas discussões recentes sobre a regulamentação, muito tem sido dito a respeito da circulação de discurso de ódio, da formação de grupos radicais, da apologia a discursos discriminatórios, da propagação de desinformação. Essa é uma face central do problema que enfrentamos quando vamos lidar com a governança do digital. E certamente identificamos nessa face o lugar dos marcadores sociais da diferença: a maioria do conteúdo relacionado a esses fenômenos envolve desrespeito e atitude criminosa contra minorias sociais marcadas por gênero, sexualidade e raça. No entanto, há um outro lado desses processos que talvez ainda tenha sido menos discutido: a situação de vulnerabilidade de várias minorias sociais diante das exclusões promovidas pelas próprias plataformas. Na academia, há várias pesquisadoras lidando com o tema, demonstrando como as minorias sexuais e de gênero têm sofrido constantemente com um processo de desplataformização, isto é, sua expulsão e exclusão de várias plataformas digitais. E nesse contexto, os marcadores não aparecem apenas como sinais de discriminação, mas como identidades e existências a serem zeladas se quisermos um digital mais inclusivo e democrático.

Eu não sei o quanto você tem acesso às culturas sexuais e de gênero que circulam pelas várias plataformas da internet e se você sabe como várias pessoas e grupos utilizam essas redes para afirmarem seus corpos e suas sexualidades e para estabelecerem redes de apoio e ajuda mútua. Eu mesma me encontrei com esse universo porque estudo trabalho sexual digital desde 2016. Trabalhadoras e trabalhadores sexuais estão relacionadas/as e circulam constantemente pelos espaços que agregam minorias sexuais e de gênero, categoria na qual elas/es se enquadram. Aqui os marcadores não se relacionam apenas com aquilo que precisa ser combatido, mas com algo a ser cuidado e respaldado. Por isso, a desplataformização e seus processos adjacentes são problemas centrais da regulação. Na verdade, eles são uma outra face da regulação, talvez ainda menos discutida devido à seriedade dos problemas que enfrentamos nos últimos anos com a proliferação do ódio e de discursos criminosos e antidemocráticos na internet. Mas ela não pode ser esquecida. Eu sugiro a leitura do Manifesto para mídias sociais positivas em relação à sexualidade. É uma ótima diretriz para começarmos a pautar esse assunto.


Em direção a uma ética para a regulação


A problemática delineada neste texto é muito mais ampla do que essas linhas dão conta de abarcar. Ainda assim, arrisco uma conclusão para esta primeira aproximação do problema buscando situar a posição dos marcadores sociais no debate sobre regulação das plataformas digitais. Primeiro, pontuo que os marcadores nos colocam questões que exigem uma ampla e profunda reflexão. Como endereçar as geografias do online e seus processos (muitas vezes silenciosos) de exclusão? Quais estratégias poderiam ser benéficas para evitar a crescente desplataformização ou redução de minorias sociais? Como tratar a desplataformização como um problema de regulação? Segundo, compreendo que os marcadores sociais, entendidos como diferenças em relação e em formação, podem e devem ser um pano de fundo ético e prático para debater e enfrentar os processos de governança do digital, tomando como primordial os direitos das minorias sociais. Dessa forma, os marcadores não apontam apenas para àquelas práticas a serem combatidas porque discriminatórias, mas nos direcionam para identidades e vivências que precisam ser cultivadas e salvaguardadas no digital de hoje e do futuro.


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Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, 2023. 

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